São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Música dirige destino em "Alma Corsária"

Filme de Reichenbach homenageia condição marginal

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O filme "Alma Corsária" realiza em vários sentidos o que o título promete. "Alma" sugere interior, sentimento, essência, reminiscência. "Corsária" refere-se a itinerância, peregrinação, vadiagem, viagem. Num plano imediato, existe uma viagem no tempo. Um longo flash-back na vida de dois amigos, Rivaldo Torres e Teodoro Xavier, a partir de um livro de poemas à maneira de memórias, "Sentimento Ocidental", de autoria de ambos. Toda a narrativa se desenvolve a partir do lançamento do livro, numa pastelaria chinesa no centro de São Paulo.
A superfície das imagens constitui, porém, apenas a metade visível da obra. A outra metade, tão ou mais importante, é o som. Os fatos narrados, de uma autoconsciente banalidade, não despertariam maior interesse, não estivessem carregados de sentimentos intraduzíveis por imagens ou palavras, e só comunicáveis pela música. É nela que a "viagem" temporal se expande para a "trip" alucinógena, a volta à terra natal, a volta ao mundo, a jornada para a morte. Por isso é ela a alma do filme.
"No princípio era a música", parece nos dizer "Alma Corsária", cuja trilha original foi composta pelo diretor Carlos Reichenbach, músico, antes de ser cineasta. Fazendo eco a Nietzsche, que considerava a música a origem de todas as artes, Reichenbach explora à vontade as duas afinidades principais entre música e cinema: a vinculação a um determinado tempo de execução; e a comunicação pelos sentidos, antes da razão.
No que se refere ao tempo, a música procura englobar as várias épocas em que se desenvolve o enredo. O som eletrônico de teclados e percussão não remete apenas à modernidade contemporânea (a música de atmosfera da "new age", o minimalismo ou o atonalismo experimental). Tem um pouco do "kitsch" dos órgãos de baile de interior e mistura ritmos como o iê-iê-iê e o hully-gully dos anos 60 com o bolero dos anos 50.
Para além da constituição da atmosfera, a música tem ainda uma função narrativa, não à maneira didática dos musicais hollywoodianos, mas indicando um mergulho auto-reflexivo do personagem, que possibilita uma pausa na ação e um alto temporal. Determina, assim, a própria estrutura do filme, exercendo uma função semelhante à dos famosos "planos-travesseiro" dos filmes de Ozu (objetos e paisagens que introduziam momentos de repouso entre as cenas de ação).
Por exemplo, esta passagem: Rivaldo, o garoto pobre e bastardo da periferia de São Paulo, abandona a escola, mudando-se para Iguape para trabalhar. Teodoro, o "filhinho de papai", vai visitá-lo. Conversando num banco de praça, Rivaldo descobre que o amigo agora namora a garota que ele mesmo amava. Nesse momento a câmera se fecha sobre ele, deixando Teodoro fora de campo. Em seguida, sem cortes, afasta-se novamente, e Rivaldo encontra-se só no banco. Uma melodia começa a soar. Rivaldo se levanta e se põe a dançar sozinho, abraçado a uma garota imaginária. A câmera sobe, e a música se estende para a cena seguinte, um baile de três anos mais tarde.
Neste breve interlúdio musical, cristaliza-se o drama que vai acompanhar o personagem ao longo da existência: o amor não correspondido, a solidão e a consequente obsessão pela morte. A música que ouvimos não é propriamente aquela que está tocando dentro de sua cabeça, apenas a faz supor, e com isso reforça a idéia da experiência pessoal e intraduzível, o mar de evocações indescritíveis que nos trazem certas melodias.
A dança, encenada como consequência da música, enfatiza o isolamento dos personagens, como nesta cena: Rivaldo, já adulto, finge-se de noivo da prostituta Anésia, que visita a família no interior. É noite. Ele fuma com o pretenso sogro na varanda. Anésia, comovida, liga o rádio e, ao som da música que começa a soar, toma Rivaldo pelo braço e os dois dançam em silêncio. Solidão da prostituta que não pode amar. Solidão de Rivaldo que não pode ter quem ama.
A dança solitária repete-se como um "leit-motiv" do filme: uma anã surge inopinadamente diante da câmera e se põe a dançar, Rivaldo tem a visão de uma solitária dama de negro que dança, chamando-o para a morte. A imagem da mulher de negro, aliás, aparece associada a lagos e barcos místicos como que extraídos dos filmes de Mizoguchi (em mais uma citação desse admirador confesso do cinema japonês que é Reichenbach).
Nas incontáveis imagens de águas e embarcações de "Alma Corsária", o "Sentimento Ocidental" dos dois amigos se une com o Oriente –o do cinema japonês e o das recordações do chinês, dono da pastelaria.
A conjunção de Ocidente e Oriente também encontra expressão musical, na sequência mais bela do filme. Um homem (o maestro Joaquim Paulo do Espírito Santo), vestido com roupas simples de operário, entra na pastelaria vazia, na qual encontra um piano de cauda. Senta-se e começa a tocar com inesperada força interpretativa o "Clair de Lune", de Debussy.
A câmera, de início fechada sobre seus dedos no teclado, ergue-se para um plano geral do local, que agora está povoado pelos convidados do lançamento do livro, todos em silêncio e absortos em suas reminiscências pessoais, evocadas pela música. Na porta da pastelaria, de costas para os demais presentes, outro solitário, um halterofilista, exibe seus músculos para o nada, escandindo o som do piano.
Nos quase sete minutos do "Clair de Lune", vemos ainda planos de riquixás e barcos em Hong Kong, praias com coqueiros e havaianas dançando em Honolulu: imagens referentes às memórias do chinês, misturadas às dos outros convivas. Essas imagens oníricas (tomadas pelo pai de Reichenbach em 1953, em película 16 mm reversível), de colorido brilhante e forte granulação, promovem, junto com a música, mais uma transição temporal, desta vez para o momento presente.
"Alma Corsária" não é, evidentemente, um filme descolado do real. Mas Rivaldo é um representante típico da marginalidade que sempre marcou o cinema de Reichenbach. Não se integrou à sociedade dos bem-nascidos, não teve escolaridade, não participou dos movimentos políticos dos anos 60, não conseguiu ser um escritor de nome, não teve família. Mesmo suas "trips" de fumo e chá de cogumelo são individuais e independentes da moda.
Essa vida apartada da realidade objetiva e voltada para o mundo interior se vê enobrecida pela música –à qual se acresce a sonoridade estridente de sua tosse, mais importante do que a definição de sua enfermidade como tuberculose.
A música se configura, assim, como o universo marginal no qual a "utopia" (louvada na abertura do filme) se une ao ímpeto suicida e ao gozo da morte. "Alma Corsária", de certo modo, se insere numa tendência do cinema atual –"O Piano", "A Liberdade é Azul"– em que a música interfere na narrativa e dirige o destino dos personagens. Mas o modo como homenageia a condição marginal o transforma num filme único.

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