São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Homem infantiliza animais e os transforma em dublês de criança

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Será espantoso que, cada vez que um de nós se mete demais a falar sobre animais, projete um discurso sobre os seres humanos? Já se disse –contra a idéia do filósofo alemão Feuerbach segundo a qual a essência do homem está em ter religião– que qualquer critério vale, para a distinção entre nós e o macaco, a gosto do freguês.
Sabemo-nos diferentes dos animais, mas uns dirão que é por sermos racionais, outros, por termos capacidade de prever enquanto eles vivem só no instante, outros ainda, por estarem eles presos à natureza, enquanto nosso mundo é o da cultura. Mas, em todos estes critérios, um quê de arbitrário subsiste, dizendo mais sobre nós do que sobre o suposto objeto de nosso conhecimento.
Estranhará, então, que proliferem livros, alguns pretensiosos, pontificando sobre os animais? Em 1993, a escritora americana Elizabeth Thomas tirava conclusões, do convívio amador com seus cães, que não passavam de projeção de paixões e reações humanas sobre eles. Os cientistas logo apontaram seu caráter fantasioso. Mas fica uma pergunta: alguém ousaria dizer bobagens desse porte em física? Uma revista como "Time" (ou o Mais!) daria suas páginas a um leigo para alegar que o sol gira em torno da Terra, ou que a Lua é feita de queijo? Só que, para falar de animais –isto é, para falar de nós, que somos animais ainda que excêntricos–, tudo parece permitido.
Isto vale para a hierarquia que Stanley Coren faz dos cães segunda sua inteligência (Mais! de 1º de maio último). O afghan hound seria especialmente estúpido (o beagle também), e o border collie o mais inteligente. Ora, qual o critério usado de inteligência? É a capacidade de obedecer a ordens humanas! Mas desde quando a inteligência de um ser se mede pela capacidade de aprender ordens de um animal de outra espécie e de obedecer-lhe? Os desejos e interesses do cão não têm de ser os mesmos do animal que se crê superior. Um cão independente, assim, terá de ser rotulado como estúpido.
Mas o estúpido não é, justamente, quem pensa que a ordem inteira dos animais foi feita para seu próprio bem, e que portanto –assim como o Dr. Pangloss de Voltaire dizia, no "Cândido", que Deus criou as pedras para que os homens construíssem castelos, e os narizes para que portassem óculos– os cachorros existem para nos obedecer? Não há nada de científico numa tese destas. A ciência, aliás, se constituiu suspendendo a crença –religiosa– segundo a qual a natureza teria sido criada para uso do homem.
Dá, porém, para entender. Ao se falar dos animais, está-se falando dos homens, pela via torta. Sartre lembra, em "As Palavras", um amigo que se indignou, no cemitério de cães do Père-Lachaise, com os epitáfios que os celebravam como superiores aos humanos. "Quem ama demais um animal é sempre contra os homens!", berrou ele, enquanto dava um forte pontapé na estátua de um cachorro. Há manuais de treinamento de cães dizendo que uns deles são mais inteligentes que determinados seres humanos. E muita gente prodiga a um cachorro um conforto que negaria a um empregado.
A explicação, contudo, talvez esteja numa tese levantada há algum tempo. O cão teria sofrido uma seleção natural meio estranha: sobraram os mais leais ao homem, domesticados, enquanto desapareciam os mais independentes. O fator decisivo foi sua alimentação pelos homens, que os converteram em "pets" ou mascotes –isto é, que os infantilizaram. O animal doméstico é, assim, um dublê de criança. Esta hipótese é razoável, desde que lembremos que também muda, de uma sociedade para outra, a representação das crianças, e que o cão mais prezado não é sempre o de brinquedo (há os caçadores etc.). Agora, dessa forte e decisiva intervenção humana no mundo canino, concluirmos que era a única via histórica aberta, e a mais correta, eis o que não tem base racional nenhuma.

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