São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Política externa indecisa põe em dúvida liderança dos EUA

JAMES BAKER 3º

O 50º aniversário do desembarque aliado na Normandia é ocasião para comemorar uma das maiores proezas militares da história e para celebrar a memória dos milhares de soldados americanos e aliados que morreram para concretizá-la. Também é um momento oportuno para refletir sobre a liderança dos EUA, que hoje está sendo questionada como nunca o foi desde antes da Segunda Guerra Mundial.
Pouco depois da meia-noite de 6 de junho de 1944, quando pára-quedistas da 101ª e da 82ª divisões aerotransportadas americanas começaram a aterrissar perto de Ste. Mère-Eglise, sua ação criou um marco histórico: o surgimento dos EUA como o parceiro mais importante da aliança ocidental.
Em 1944, a primazia americana refletia uma mudança radical e espantosa. Durante a Primeira Guerra Mundial, apesar do papel crucial que desempenhamos na derrota da Alemanha, os EUA funcionaram como sócios menores da França e do Reino Unido.
Mesmo depois de nossa entrada na Segunda Guerra, em dezembro de 1941, continuamos a desempenhar papel secundário em relação aos britânicos –que já estavam em guerra com a Alemanha de Hitler havia mais de dois anos.
Mas em junho de 1944 a preponderância do poderio militar e industrial dos EUA já havia alterado o relacionamento anglo-americano. O Reino Unido e nossos outros aliados iriam desempenhar papéis críticos na vitória final sobre o Eixo. Mas a primazia dos EUA na aliança era inquestionável.
Ela continuaria inquestionável durante o restante da Segunda Guerra e as quatro décadas da Guerra Fria. Agora, essa liderança está sendo posta em dúvida.
Ironicamente, não é uma potência estrangeira que a está desafiando. Os EUA hoje gozam de segurança e estatura que não têm paralelo na história moderna.
Nossa adversária global por mais de 40 anos, a URSS, está extinta. A Rússia já não representa uma ameaça convencional aos EUA ou à Europa ocidental. A China, embora seja uma força econômica e uma potência militar regional, ainda é incapaz de exercer influência mundial.
Os EUA tampouco têm rivais pela liderança entre seus parceiros na aliança ocidental. Apesar de sua força econômica, nem a Alemanha nem o Japão estão preparados para assumir a liderança –por razões históricas poderosas, associadas a seu papel na Segunda Guerra. E a União Européia não possui a unidade necessária para assumir um papel de liderança, como revelou a tragicomédia de sua política em relação aos Bálcãs.
É a própria política externa dos EUA que vem lançando dúvidas sobre a liderança mundial americana. É verdade que ela tem conseguido algumas conquistas sólidas nos últimos 18 meses.
O Acordo Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) foi aprovado, graças em grande parte ao engajamento pessoal –embora tardio– do presidente Clinton. As conversações de paz do Oriente Médio chegaram a uma grande conquista com o acordo Israel-OLP -conquista inconcebível sem os esforços dos EUA, que abriram caminho para sua concretização. E a administração vem seguindo uma orientação resolutamente pró-reformas na Rússia.
Mas em outras áreas a política externa dos EUA dá sinais de confusão e indecisão. A administração e seus defensores argumentam que hoje o país enfrenta um mundo muito mais complexo do que o da Guerra Fria. Eles têm razão. Mas essa complexidade, longe de diminuir a necessidade de liderança americana, a faz crescer.
Em março, as tropas dos EUA finalmente saíram da Somália –mas não antes de sofrerem a tragédia de outubro, em Mogadício, consequência direta de uma mudança mal-pensada nos objetivos americanos. A política da administração para a Bósnia, com sua inadequação entre retórica e realidade, pode ser qualificada, com muita tolerância, de confusa. Em relação ao Haiti, a administração mudou de rumo mais uma vez.
Quanto à China, a administração Clinton quer duas coisas mutuamente excludentes. Durante um ano ela ameaçou tirar da China o status de "nação mais favorecida" em comércio, se Pequim não melhorasse sua política de direitos humanos. É claro que a China não fez nada. Mas a administração renovou o NMF mesmo assim. E sua posição em relação à Coréia do Norte parece refletir um enfraquecimento da abordagem inflexível contra a proliferação nuclear.
Durante a Guerra Fria, as relações dos EUA com a URSS faziam sombra a quaisquer outras preocupações em política externa. Hoje, nenhuma questão isolada é tão importante. Em lugar disso, a política externa americana precisa lidar com uma ampla gama de questões –nenhuma decisiva por si só, mas que no conjunto representam um teste dos interesses e da influência do país. É o efeito cumulativo que conta. E, desde que a administração Clinton assumiu o poder, esse efeito tem sido irregular, na melhor das hipóteses.
As mudanças constantes de política, aliadas à retórica exagerada, suscitaram preocupações quanto à determinação americana. As políticas relativas a Haiti, Somália, Bósnia, China e Coréia do Norte transmitiram sinais ambíguos em relação à seriedade dos EUA. O resultado tem sido uma perceptível erosão da credibilidade do país.
Se o declínio na credibilidade americana não for revertido, ele pode ter três efeitos negativos.
O primeiro diz respeito a nossos aliados. Desde a Segunda Guerra, a liderança americana depende da confiança que os aliados podiam depositar na palavra dos EUA. Quanto mais nossa retórica diverge da realidade, mais essa confiança é solapada. E quanto mais recorrermos a ameaças vazias, mais ela se reduz. Já se ouve um murmúrio de críticas veladas entre nossos aliados europeus. Se não for tomada uma iniciativa para assinalar uma resolução americana clara e inequívoca, o murmúrio pode se transformar em coro.
Em segundo lugar, qualquer atitude percebida como fraqueza americana vai suscitar esperanças entre potenciais adversários. O fiasco do ano passado em Porto Príncipe, quando algumas dúzias de militares bandidos fizeram a Marinha dos EUA bater em retirada, encorajou o regime militar e dificultou o retorno de um governo representativo ao Haiti. Do mesmo modo, uma posição conciliadora em relação à Coréia do Norte não passará despercebida por outros candidatos a proliferadores nucleares em países como Líbia, Irã e Iraque.
Em terceiro lugar, uma política externa confusa solapa o consenso nacional de apoio a engajamentos americanos no exterior. Esse apoio popular, forjado na Segunda Guerra e sustentado nas décadas seguintes (apesar da interrupção no caso do Vietnã), ainda é condição para uma política externa eficaz.
A administração Clinton não é isolacionista. As metas declaradas de sua política externa se enquadram na tradição internacionalista que remonta a Franklin D. Roosevelt. Mas os erros estão favorecendo os isolacionistas à esquerda e à direita no espectro político.
Uma pesquisa recente revelou que menos de 15% dos americanos têm uma noção clara da política externa do país. É uma má notícia –não só para a administração, mas para a política externa dos EUA. Ao que parece, os americanos estão confusos justamente num momento em que precisariam compreender claramente quais são os interesses americanos em jogo na era pós-Guerra Fria.
Ao ver imagens filmadas das praias Utah e Omaha, não podemos deixar de perceber o quanto o mundo mudou desde 1944. Os americanos de então tinham um sentimento de otimismo e confiança que hoje parece muito distante.
Uma coisa permanece: a necessidade de liderança americana. Meio século após o Dia D, os EUA conquistaram uma posição única de poder e prestígio nos assuntos mundiais. Foi preciso liderança para atingi-la. Também será preciso liderança para mantê-la.

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