São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Brasil, oportunidade e desafio

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Para quem se propõe a governar o país pelos próximos quatro anos, o que há de instigante no Brasil hoje é ao mesmo tempo a oportunidade e o desafio.
A oportunidade vem do dinamismo da economia, mas vem também do amadurecimento político da sociedade.
Sobre a economia não há muito o que acrescentar ao que é evidente: por baixo da estagnação dos índices de crescimento nos anos 80, o setor privado brasileiro se ajustou e está pronto para prosperar num ambiente muito mais aberto e competitivo.
Resta a ameaça da superinflação, que, se não fosse controlada, poderia reverter as perspectivas de crescimento. Essa fonte de incerteza o governo Itamar Franco, com a minha colaboração como ministro da Fazenda, equacionou de maneira corajosa e competente com o Plano Real.
Isto me permite afirmar o que meus competidores na eleição presidencial relutam em admitir mas não se arriscam a negar: que a inflação vai despencar a partir de julho, com a entrada do real. E que isso vai desanuviar o horizonte dos investimentos e abrir caminho para o crescimento sustentado.
Muito bem, mesmo quem aposta contra o plano faz profissão de fé no potencial da economia brasileira (embora sem explicar como realizaríamos esse potencial num ambiente superinflacionário). Mas e a vergonhosa dívida social?
Um relatório recente da ONU voltou a classificar o Brasil entre os campeões mundiais da desigualdade, com indicadores sociais piores do que países como o Chile, Costa Rica e México, com renda per capita menor que a brasileira.
Iremos repetir, na década de 90, a constatação melancólica feita pelo general Médici na década de 70 de que a economia vai bem mas o povo vai mal?
Contra esse risco, que é real, ergue-se o segundo fator positivo que mencionei: o amadurecimento político da sociedade.
Pode parecer muito otimismo afirmar isso num momento em que a confiança na política e nos políticos está tão abalada pelos escândalos de corrupção e pela incapacidade de tomar decisões. Mas, examinando bem, a própria crise de confiança não deixa de ser um sintoma do amadurecimento.
A sociedade brasileira mudou, apesar da miséria e das injustiças.
Mudou em termos institucionais, com a multiplicação das formas de organização e defesa dos interesses de segmentos sociais específicos. Mudou em termos culturais, com a conscientização dos direitos que caracterizam a cidadania nas democracias modernas.
E por isso dá sinais crescentes de impaciência com um Estado –incluindo sua parte mais visível, a classe política– que não mudou no mesmo passo: não ajustou suas contas nem reviu seu papel na economia para atender às novas exigências do desenvolvimento; não refez seus mecanismos de decisão para lidar de maneira transparente com as múltiplas demandas da sociedade.
Mais cedo ou mais tarde o Estado brasileiro vai ter de mudar para acertar o passo com o dinamismo do país real.
O grande desafio do próximo presidente –não só dele como do Congresso e dos governadores que serão eleitos neste ano e das forças políticas em geral– é fazer com que as mudanças aconteçam pelo modo democrático. Vale dizer: dentro da Constituição e das leis, de acordo com a vontade da maioria e, sobretudo, em benefício das camadas mais pobres da população.
Para isso é preciso pelo menos duas coisas: idéias claras sobre o rumo das mudanças e respaldo para levá-las adiante.
Por falta de consistência da maioria favorável à revisão, mais do que pela obstrução dos "contras", o Brasil acaba de perder a oportunidade de retirar da Constituição alguns dos nós que dificultam a reorganização financeira e administrativa do Estado.
O próximo presidente, além de querer enfrentar essa questão, o que implica em entender que ela é fundamental, vai ter de se empenhar na articulação da maioria política necessária para retomar as mudanças fundamentais para dar melhores condições de governabilidade ao país e recuperar a capacidade de ação do governo a favor dos mais pobres.
Não subestimo as dificuldades da empreitada. As resistências não vêm apenas do Estado –da classe política, da burocracia– mas da própria sociedade, que muitas vezes quer a mudança mas não quer pagar o preço da mudança.
Sinto-me estimulado a enfrentar o desafio porque tenho convicção de que sei para onde caminhar. E não apenas um saber teórico, mas amadurecido por anos de trabalho e lutas como senador e ministro, lidando dia-a-dia com a complexidade das demandas sociais, da economia e do sistema político.
Anima-me, além disso, a certeza de que o próximo presidente não vai partir da estaca zero mas, com o êxito do Plano Real, assumirá um país com Orçamento e inflação sob controle.
Em boas condições, portanto, para centrar fogo nas reformas estruturais previstas no próprio plano: redistribuir as funções da União, dos Estados e dos municípios, aprofundando a descentralização e permitindo maior eficácia dos gastos sociais; simplificar o sistema tributário e suprimir as vinculações que engessam o gasto público; eliminar as barreiras ao investimento de capitais privados, nacionais ou estrangeiros, nos setores de infra-estrutura.
Por último, mas não menos importante, confio no amadurecimento da sociedade brasileira, como já disse, e em minha própria aptidão para obter a convergência de opiniões e forças políticas para levar adiante essas mudanças. Sem arrogância nem sectarismos, apostando na nossa capacidade de melhorar a nós mesmos para melhorar o Brasil.

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