São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Cultura do e para o cidadão

EDEMAR CID FERREIRA

Trata-se de uma fantasia neoliberal, sem fundamento na vida real, imaginar que o mercado por si só é suficiente para estimular a produção cultural e a criação artística. Mercado gera entretenimento sim, mas a cultura carece de estímulos financeiros produzidos pela sociedade, coletiva e organizadamente.
Os norte-americanos são mestres no assunto e sabem distinguir isso muito bem até nas palavras usadas para definir a profissão dos artistas: Frank Sinatra é "entertainer", "singer" é Luciano Pavarotti; Madonna é "entertainer", "singer" é Kiri Te Kanawa.
O estímulo para a produção de cultura nova, instigadora e ousada não pode resultar de bilheterias, vendas em lojas ou comércio de obras de arte, mas, ao contrário, sempre vem de algum tipo de recurso coletivo. Tanto ele pode ser previsto no orçamento do poder público quanto ser retirado de dinheiro privado.
Só que as doações privadas resultam de algum tipo de renúncia fiscal: quem sustenta a atividade cultural é, direta ou indiretamente, o público, seja pela forma da subvenção oficial, seja pela renúncia fiscal. O dinheiro para manter a cultura sai do bolso do contribuinte ou deixa de entrar nos cofres públicos.
Hoje, a maioria dos países ricos prefere adotar o segundo método. Pois a subvenção geralmente leva a algum tipo de controle oficial, o que é sempre indesejável em matéria de criação estética ou produção cultural.
O criador de arte ou o produtor de cultura não precisa apenas de dinheiro para se manter, do ponto de vista material. Para criar e produzir, ele precisa da liberdade como do ar que respira.
Outra vantagem da renúncia fiscal como forma de estímulo à produção estética e cultural é a possibilidade de disseminação do patrocínio. Graças a ele, mais pessoas decidem mais democraticamente qual artista deve ser estimulado a criar. Só que isso não pode ser feito de forma aleatória ou amadorística.
O patrocínio privado é uma atividade social tão importante que exige uma especialização e uma profissionalização. Para que o artista possa surpreender, é preciso que o gestor nunca surpreenda. O segredo do avanço na pesquisa e uso dos códigos culturais e estéticos é a capacidade de produzir o inesperado de forma ousada.
Por trás de tal ousadia, é preciso haver um alto grau de previsibilidade na administração dos recursos que dão sustentação à atividade cultural.
A sociedade brasileira já amadureceu o suficiente para saber que a permanente manutenção da atividade cultural e estética é uma forma de retorno do dinheiro dispendido pelo poder público, da mesma maneira que as verbas investidas em educação, saúde pública, saneamento básico, segurança e outros itens orçamentários.
O patrocínio é uma atividade legítima e necessária. Da mesma forma que outros itens orçamentários, é preciso encontrar a correta escala de prioridades para evitar desperdícios, privilégios e outros tipos de desvios.
Para tanto, convém instalar mecanismos sociais de controle, capazes de permitir uma avaliação permanente da sociedade, com acesso à contabilidade dos recursos que ela está investindo e que devem, por isso mesmo, produzir o retorno mais conveniente.
O sistema ideal de patrocínio é o adotado nos Estados Unidos, e um de seus melhores exemplos é o Lincoln Center, em Nova York. Não devemos ter medo de copiar o que é bom. Naquele país, há um órgão oficial, mas sem estrutura burocrática pesada, o National Endowment of Arts, para selecionar os projetos que podem propiciar a renúncia fiscal dos eventuais patrocinadores.
Em tal sistema, pessoas físicas e jurídicas doam os recursos que sustentam o balé, os musicais, as exposições de artes plásticas e o teatro daquele respeitado núcleo cultural, sendo tais doações descontadas do Imposto de Renda.
As verbas obtidas por tais meios são administradas por fundações de caráter privado, mas com as contabilidades transparentes e abertas a permanentes auditorias de conhecimento público. Os conselheiros não são remunerados, mas os profissionais, sim. Estes são pagos. E bem remunerados, em níveis que dificilmente a administração pública teria capacidade de sustentar.
Essa receita pode funcionar também no Brasil. No caso do Teatro Municipal de São Paulo, para dar o exemplo mais óbvio e à mão, as instalações físicas devem continuar fazendo parte do patrimônio público, mas a infra-estrutura de pessoal e a organização podem –e devem– ser privatizadas, através da criação de uma fundação de direito privado.
O estilo de gestão do Lincoln Center seria muito bem-vindo na administração do Teatro Municipal de São Paulo.
A sociedade brasileira precisa tomar a importante decisão política de aumentar a base da incidência da renúncia fiscal para a geração de recursos suficientes para sustentar uma atividade cultural permanente e cada vez mais rica.
Tais recursos devem ser administrados por fundações de natureza privada, mas com contabilidade aberta ao público para avaliação permanente da sociedade geradora dos recursos e destinatária dos bens culturais. A profissionalização da gestão dessas fundações também é de grande interesse social.
Assim como deu certo no Brasil a Lei do Mercado de Capitais –criada à luz da legislação norte-americana por Roberto Campos no governo Castello Branco– por quê, de uma vez por todas, não nos inspirarmos numa experiência de comprovado êxito e eficácia, como o National Endowment of Arts na busca de um patrimônio cultural a ser criado e mantido pelo e para o cidadão brasileiro comum? Ele gera os recursos, como contribuinte, e se beneficia diretamente da criação artística e da produção cultural, como consumidor.

Texto Anterior: Brasil, oportunidade e desafio
Próximo Texto: Dever e poder; Atores no Senado; Escobobos; Desgoverno petista; Leandro & Leonardo & FHC; Empresa pública e democracia; Copa e cozinha; Exército nos trilhos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.