São Paulo, domingo, 5 de junho de 1994
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Terceiro Mundo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Abre-se a porta do elevador e antes que alguém possa esboçar o primeiro passo para a saída, uma legião de gravatas, bigodes, lavandas, tênis e óculos avança para o interior do cubículo. A simples operação de troca de passageiros não chega ao fim sem uma sequência de esbarrões, contorções, desvios e contatos de corpo.
"É coisa de Terceiro Mundo", queixa-se a moça de cabelos escovados, enquanto realinha seu tailleur. De fato, o processo de socialização no Brasil não parece prever, entre tantas coisas, o comportamento adequado de elevadores. Entra-se e sai-se como num formigueiro.
Mas o comentário da moça de cabelos escovados não é simplesmente uma constatação sociológica. É uma declaração de distinção social.
Ela faz parte dessa pequena fatia de brasileiros que passeia pelo país como um inglês em férias na Índia. "Primeiro Mundo" e "Terceiro Mundo" são expressões que conquistaram o vocabulário desse grupo com uma função muito clara: reforçar os emblemas do apartheid econômico que vigora no país.
Nesta acepção, "Primeiro Mundo" significa: jatinho, telefone celular, carro importado, restaurantes a preços extorsivos ornados com espelhos e dourados, camarote vip, arquitetura faraônica, Brieting, Boca Raton. Em geral a expressão sintetiza uma descrição e é precedida pela palavra "coisa".
Exemplo: "Fui à festa do Jorginho. Tinha avião fretado, carro esperando e só champanhe francês. Coisa de Primeiro Mundo!".
Ou: "É fantástica a loja da Juju. Tudo de mármore. Até a pia do lavabo é importada. Coisa de "Primeiro Mundo!"
"Terceiro Mundo", ao inverso, nomeia os inúmeros incômodos da miséria e do caos circundante. As coisas que atrapalham as férias. Diz-se, por exemplo, quando a empregada (que por definição é coisa de Terceiro Mundo) apropria-se indevidamente de uma calcinha da patroa: "Que gentinha. Terceiro Mundo é fogo!".
O uso insistente de tais expressões ganhou impulso no período Collor de Mello, ponto culminante do nosso provincianismo endinheirado. O eleito adorava "coisa de Primeiro Mundo", tipo ilhas Seychelles, jet-ski, helicóptero, jardins babilônicos e, "last but not least", money, muito money. Infelizmente, o presidente revelou-se um sinhozinho engravatado do Terceiro Mundo.
É inegável que algumas de suas medidas indicavam um caminho mais moderno e competitivo para o país. A resposta da indústria automobilística, por exemplo, à redução dos carros importados foi notável, com a rápida introdução no mercado de modelos atualizados internacionalmente. Mas o legado das idéias de Collor acabou se traduzindo numa maior coesão das camadas abastadas em torno da reciclagem de seus ícones de status.
Numa operação ideológica perversa, o ápice da pirâmide social passou a se autodesignar "Primeiro Mundo", deixando o resto - os pobres - no "Terceiro".
Mas quem já cruzou o oceano sabe perfeitamente que o distingue os chamados países de Primeiro Mundo não é a lista de símbolos de consumo de luxo de predileção dos nossos ricos. É a vigência de uma civilização, de uma cultura, de um contrato social sob o signo do respeito. É a valorização do trabalho e do conhecimento. É o acesso ampla ao bem-estar social.
Não é pagar salário de fome, comprar um BMW com cascata e filhote de jacaré, furar os sinais vermelhos e estacionar em fila tripla na frente do restaurante.

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