São Paulo, terça-feira, 7 de junho de 1994
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Sejamos realistas

JOSÉ SERRA

Depois de percorrer no fim-de-semana exatamente 16 cidades do interior de São Paulo, em companhia do senador Mário Covas, fiz, domingo à noite, um balanço do noticiário e das análises dos jornais e revistas. Selecionei dois temas, talvez complexos para o espaço da coluna, mas extremamente relevantes.
O primeiro é o da Ufir, nome de deus egípcio, na realidade mísera unidade de conta e de indexação dos impostos federais. Paira a seguinte idéia: "se o governo não extingue a Ufir, é porque não confia no seu programa contra a inflação; se não confia, não vai dar certo". Certo? Claro que não. Acertadíssima é a decisão de não apagar a Ufir e isto não significa necessariamente insegurança quanto ao sucesso da estabilização. Vejamos porque.
Primeiro, sucesso não quer dizer inflação zero. As experiências do México, da Argentina e de Israel (e até mesmo do Chile) sugerem que estabilização bem-sucedida significa uma inflação (custo de vida) em torno de 20% anuais nos dois primeiros anos. Ora, nesse contexto, por que o governo se resignaria ao chamado efeito Tanzi (corrosão da receita tributária pela inflação), vendo-se obrigado a elevar as alíquotas nominais de impostos para evitar o aumento do déficit?
Ora, diria um debatedor inteligente: bastaria, nesse caso, o governo voltar a indexar. Inteligente, sem dúvida, mas desconhecedor da tecnologia sofisticada dos nossos advogados tributaristas, que já conseguiram fixar, junto ao Judiciário, o princípio de anualidade para a indexação de impostos. Ou seja, se a Ufir for extinta agora, sua ressurreição somente poderia ocorrer a partir de janeiro de 1995 (isto se fosse recriada até o fim deste ano) ou janeiro de 1996. Tal anualidade não existe, por exemplo, em relação aos salários, cuja indexação poderia voltar em instantes: uma MP sobre salários editada às 23h59'59" do dia 31 já valeria como lei a 0h0'1" do dia 1º.
O outro tema, desculpe, é o da malograda revisão constitucional. Irresponsabilidade tão grande quanto não ter votado a revisão depois de ter recusado antecipá-la, dividi-la ou postergá-la, deixando-a assim para este ano supereleitoral, é o Congresso não ter aberto a janela para uma ampla reforma constitucional no ano que vem, em razão de uma mistura de abulia geral e de oportunismo eleitoral de alguns partidos.
Ora, todos os presidenciáveis sérios sabem que para executarem qualquer programa de governo relevante necessitarão de numerosas mudanças na Constituição. Sabem também, ou deveriam saber, que, se começarem a tratar do tema em janeiro de 1995, até se encontrar-se uma fórmula terão consumido metade de um governo, o que seria intolerável. A crise institucional, portanto, é certa, tão certa como a previsão, feita no ano passado nesta coluna, de que a revisão em ano eleitoral não iria dar certo.
PS – Caio Pompeu estava escapando do câncer mas morreu de infarto, como sempre repentino e estúpido, no último sábado. Foi-se um homem público de um caráter tão bom que às vezes o tornava indefeso. Era uma raridade na política, avesso ao sentimento de inveja, à deslealdade e a intrigas. Teve uma atuação exemplar como secretário da Prefeitura de São Paulo (gestão Olavo Setubal) e depois no governo do Estado (gestão Franco Montoro), neste caso como meu colega. Fará muita falta ao PSDB, a São Paulo e a seus amigos.

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