São Paulo, terça-feira, 7 de junho de 1994
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Lula e a heresia de legitimidade

TASSO GENRO

TARSO GENRO
A ira gerada pela afirmativa de Lula de que prefere o "justo" e o "legítimo" à mera legalidade demonstra –segundo a origem das opiniões– hipocrisia, oportunismo eleitoral ou mero desconhecimento do direito numa sociedade que nunca respeitou a voz dos que exprimem qualquer tipo de dissidência aos padrões estabelecidos.
Os conflitos entre legalidade e legitimidade, entre lei e justiça percorrem a história da filosofia do direito e a formação das democracias contemporâneas. Este conflito caracterizou a emergência da racionalidade do Estado de Direito democrático contra os privilégios de ordem e de casta no fim da sociedade feudal.
Lula manifestou, então, espontaneamente, a atualidade e a recorrência do tema, num país cujas elites letradas –na sua maioria– sempre sustentaram seus privilégios com ou sem abrigo na lei.
A história do direito iluminista, da democracia parlamentar inglesa e da afirmação da legitimidade do Parlamento, contra as leis do rei, a história do Estado de Direito, são histórias permanentemente atravessadas pelo conflito entre o que é justo e legítimo (e tem a pretensão de se tornar lei) e o que é velho e injusto (e que deve ser substituído em nome da legitimidade).
A emergência da razão é a emergência da legitimidade popular, contra as normas que abrigavam os privilégios da aristocracia decadente, no Ocidente que se modernizava.
Deve ficar claro que Lula jamais disse que desrespeitaria determinações do Poder Judiciário, compromisso básico da magistratura presidencial, como guardião que é, o próprio presidente, do Estado de Direito. Diferente, porém, é pautar-se segundo o entendimento daquilo que é justo e legítimo, contra leis eventualmente injustas. Proceder em busca da legitimidade e da justiça não é uma obrigação de um presidente, deve ser uma característica de qualquer cidadão. Tensionar leis caducas, obter decisões do Judiciário contra elas, escolher os princípios gerais do direito contra leis espúrias, isso é simplesmente afirmar a necessidade de reformas e da superação do atraso. Qual o limite? A decisão soberana do Judiciário a respeito da própria validade da lei em questão e da sua permanência eficaz no sistema normativo em cada caso concreto.
O reconhecimento dos direitos mais elementares da cidadania permite ao indivíduo abordar a lei como uma referência daquilo que é justo e consensual, se assim entender, e não como o próprio direito. Qualquer manual não-fascista de filosofia do direito reconhece que o cidadão pode inconformar-se com a visão dominante a respeito da própria legalidade, sob pena de se fixarem leis contingentes –como foram várias durante a ditadura– como dotadas de uma legitimidade supra-histórica ou a-histórica, ou seja, subordinantes da própria liberdade do sujeito para reconstruir, permanentemente, as suas condições de existência.
A metodologia que permitiu aos tribunais comuns subordinarem-se às leis ilegítimas do nazismo (na Alemanha), ou legitimarem leis que ajudaram a esconder e validar a tortura como método medieval de interrogatório (no Brasil), têm a mesma vertente filosófica dos indignados críticos de Lula, a saber, o entendimento estatizante de caráter absolutista de que a sociedade civil é mera extensão do Estado e os cidadãos são servos da normatividade.
Numa avaliação puramente empírica, obrigatoriamente chega-se à conclusão de que as decisões dos tribunais sobre a legalidade, ou não, de determinados comportamentos sempre ocorrem em função das conjunturas que as informam. O próprio tensionamento do que é aceito como legal, num determinado momento, pode, então, ser instrumento de aperfeiçoamento do sistema jurídico, que nunca está paralisado, sempre evolui, numa ou noutra direção, mudando para melhor ou para pior a inflexão da totalidade da ordem.
O caso mais típico do apego à sacralização amoral da lei é o estudado por Gustav Radbruch –jurista tradicional alemão, defensor do Estado de Direito– quando examina a capitulação dos juízes alemães durante a "legalidade" nazista, o que serviria para os nossos juízes militares durante a ditadura. Em nome da lei, eles destruíram a própria idéia do direito e assassinaram a liberdade. Negaram-se a interrogar a norma existente a partir de princípios, ou seja, não cogitaram da sua legitimidade. Não foi outro o comportamento de Vishinsky –promotor dos processos de Moscou– que pediu aos tribunais "legais" da URSS centenas de cabeças sem indagar da legitimidade das normas penais que exercitava.
Mas o mais irônico deste momento de raro cretinismo da elite tradicional do país e dos seus porta-vozes é que alguns denunciantes de Lula fizeram ouvir as suas críticas através de aparelhos de som de algumas entidades sindicais empresariais, que sabem manipular bem mais do que os preços –manipulam o próprio direito escrito no país, interpretando-o sempre de forma a contemplar seus interesses corporativos. Afinal, o produto da idéia de direito que eles defendem tornou sempre o país mais pobre e eles incrivelmente mais ricos.
Lula, quando afirmou que preferia o legítimo e o justo ao legal e quando acatou a decisão de um juiz contra a sua posição, reservando-se, então, para o debate judicial da questão levantada com o seu comportamento, nada mais fez do que qualquer magistrado honesto faz no país quando examina uma demanda. Demonstrou apego e respeito à ordem jurídica e à função do Judiciário e buscou –também– ler a lei indagando sua legitimidade, informado pelos princípios e não subordinando estes –patrimônio jurídico da história universal– aos legisladores do presente.
Toda lei no Estado de Direito deve ser dotada de legitimidade e qualquer cidadão, seja ele um magnata que compra os pareceres dos juristas que negociam princípios, seja um operário metalúrgico, pode impugnar a lei sem desrespeitar a ordem jurídica democrática.

TARSO GENRO, 46, advogado, é prefeito de Porto Alegre. Foi deputado federal pelo PT do Rio Grande do Sul (1989-90). É autor de "Na Contramão da Pré-História" (editora Artes e Ofícios, 1993).

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