São Paulo, sexta-feira, 10 de junho de 1994
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Chegaremos lá

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não se pode descrer das possibilidades do Brasil. Sou pessimista por formação e gosto, mas volta e meia sinto-me obrigado a reconhecer que ainda chegaremos lá. Estava eu assistindo a goleada sobre Honduras (antigamente não se dizia "goleada" e, sim, "lavagem") quando fiquei sabendo que a terra brasileira tremia.
Tremia, não de emoção pelos oito gols que enfiamos no time de Honduras. Poderíamos ter enfiado 16 ou 32 se a partida durasse mais. A terra tremeu por causa de um terremoto cujo epicentro foi na Bolívia. Lustres de cristal, na avenida Paulista, tremeram como nos filmes em que há terremotos. Homens de pijama, mulheres esbaforidas em Curitiba, coloridos nacos da sociedade brasileira desceram à rua para evitar os desabamentos que felizmente não ocorreram.
Ficou o anúncio. Estávamos todos no mesmo barco. Nem se pode dizer que terremoto é coisa de Terceiro Mundo. Los Angeles sofreu o diabo, recentemente. Tóquio teve milhares de vítimas. México, Guatemala, Itália –a crosta terrestre não toma conhecimento daquela ciência que o finado Golbery tanto apreciava: a geopolítica. Há terremoto onde deve haver terremoto.
Não sei por que nós, aqui no Brasil, achávamos que éramos abençoados por Deus e bonitos por natureza. Não ter vulcões nem terremotos fazia parte do superego nacional.
Nada demais que, justamente quando começamos mais uma Copa, na justa noite em que desembestamos a fazer contra Honduras os gols que não fizemos contra o Canadá, justo nesta noite a terra tenha tremido por causa do epicentro na Bolívia. Haverá o dia em que o epicentro será mais perto e mais nosso.
Tenho no meu escritório um lustre complicado, comprei-o em Murano, dá aos meus livros um clima de Orient Express, de Hotel Danieli. Já pensava em vendê-lo, colocar luminária mais moderna e estimulante.
Ficarei com o lustre. Eu o vigiarei. Pelo que sei em matéria de terremotos, a coisa começa pelos lustres. Estarei alerta. Não pretendo morrer num fim-de-mundo. Se possível, prefiro assistir o fim do mundo.

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