São Paulo, sábado, 11 de junho de 1994
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A âncora cambial e os poetas

ANTÔNIO CORRÊA DE LACERDA

"Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure".
(Vinícius de Moraes)
Foi assim, parafraseando Vinícius de Moraes, que o ministro Ricupero tentou definir a política cambial após a introdução do real, quando, nas suas palavras, o câmbio R$/US$ estará não fixo, mas "temporariamente estável".
A poesia ameniza a aridez do assunto, mas não nos exime dos riscos e consequências decorrentes. É mais uma tentativa de estabilização, dessa vez "high tec", após o malogro de uma sequência desastrada e mal sucedida de pacotinhos e pacotões, que nos meteram num verdadeiro embrulho!
O mercado já lia há algum tempo que a principal âncora do Plano Real é o dólar. Do alto de um nível de reservas cambiais que beiram os US$ 40 bilhões, há de fato um certo fôlego, dependendo do "timing" desejado, para o governo manter o câmbio congelado, ou como quer o ministro, "estável". Como tudo indica que o "timing" está relacionado com o calendário eleitoral, a alternativa é factível, embora de risco e consequências nefastos.
A busca do saldo da balança comercial é favorecida por uma taxa real de juros estratosférica no mercado interno, que chega a 30% ao ano, ou mais ou menos dez vezes a média dos países desenvolvidos.
Isso incentiva os Adiantamentos de Contratos de Câmbio (ACCs), ou seja, o exportador antecipa o fechamento do câmbio de exportação para receber os cruzeiros reais (ou reais) correspondentes e os aplica no mercado financeiro, para aproveitar os elevados juros.
Da mesma forma fluem os capitais estrangeiros especulativos de curto prazo ("smart money"), em busca da rentabilidade atrativa proporcionada pela nossa ciranda financeira e inflando as reservas, que portanto se tornam, em grande parte de sua composição, extremamente voláteis.
O resultado desse processo é que a manutenção de nossas reservas cambiais é extremamente penosa para o país, na medida em que o seu custo tem um impacto desastroso sobre as contas públicas, já que a diferença entre os juros externos e internos é um encargo do Tesouro.
Como consequência, o custo de rolagem da dívida pública, que é a contrapartida interna desse processo, tem anulado todo o esforço fiscal (superávit primário) e refletido num relutante déficit pelo conceito operacional.
Este é o paradoxo da nossa política econômica: enquanto o nível das reservas nos dá tranquilidade na área externa e inibe a especulação interna, há uma cavalar transferência de renda para os credores do governo, avaliada em cerca de 4% do PIB nos últimos 12 meses, através das altíssimas taxas de juros praticadas no mercado financeiro.
Isso é trágico mas não é tudo. Elevadas taxas de juros inibem a produção e inviabilizam os investimentos, formando um ciclo perverso de estagflação e penalizando o emprego e a renda. Ninguém se aventura ao médio e longo prazos e nos tornamos reféns do curtíssimo prazo, mais rentável e menos arriscado.
Da mesma forma, o câmbio fixo tende a prejudicar nossa competitividade nas exportações, parcialmente compensadas pela produtividade do setor exportador, pelos juros elevados nos ACCs e pelos anunciados incentivos fiscais, além de estimular as importações. A consequência desse movimento duplo é a deterioração do saldo comercial, ou a parte sadia das reservas.
Aí está delineada a verdadeira armadilha do Plano Real, cujas agrúrias decorrentes, nossos poetas mal podem imaginar. Sem encararmos de frente as reformas estruturais, como principalmente as questões fiscal-tributária e patrimonial, a estabilização permanente será sempre apenas um sonho distante e o sucesso de curto prazo, apenas "infinito enquanto dura", agravando a já deteriorada estrutura econômico-social brasileira e dando margem a casuísmos.

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