São Paulo, sábado, 11 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poeta deu trégua à angústia em Petrópolis

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Há uma dupla biografia ou um delicado romance biográfico a ser escrito no Brasil: a história da poeta americana Elizabeth Bishop e seu grande amor, Lota Macedo Soares.
A recente publicação nos Estados Unidos da correspondência de Elizabeth Bishop entre 1934 e 1979 ("One Art") torna claro que essa grande e exigente artista viveu no Brasil, principalmente em Petrópolis e sobretudo graças a Lota, os únicos anos verdadeiramente felizes de sua vida angustiada. A "one art" que dá título a suas cartas é a arte de perder, "que é fácil de dominar".
Pela seleção das cartas feita pela revista "New Yorker", vejo que a primeira delas, datada do Rio, em 1952, e dirigida a outra grande poeta, Marianne Moore, já está repleta de Lota e de alegria.
"Tenho estado quase todo o tempo a umas 40 milhas do Rio, na casa de campo de Lota, casa que é uma espécie de sonho composto de vida de planta e de bicho. Não consigo acreditar que seja tudo verdade. Não só há montanhas inesperadas por todos os lados e nuvens boiando para dentro e para fora do quarto da gente, como há cascatas, orquídeas, todas as flores de Key West que eu conheci, assim como maçãs e pêras do Norte também."
Lota Macedo Soares era praticamente a dona de todo o morro e chácara da Samambaia, Petrópolis, e no topo da montanha fez construir pelo arquiteto Sérgio Bernardes essa casa de sonho que o ruço serrano de fato frequentava com naturalidade. Vendeu vários terrenos da Samambaia a amigos seus, entre os quais Carlos Lacerda, com quem trabalhava num ritmo assustador, finalmente mortal, na construção do Parque do Flamengo, ou do Flamingo, como aparece nas cartas de Bishop.
A casa de Lota dava mesmo a impressão de ter estado sempre ali, nascida das águas e das pedras musgosas. Ali Elizabeth Bishop, além de muitas poesias, fez sua clássica tradução inglesa do "Minha Vida de Menina", de Helena Morley.
Dali, contou ela, em uma outra carta: "Faz muito frio de noite e de manhã, mas durante o dia o calor é grande e a gente almoça ao ar livre, e o azul brilha, brilha, enquanto umas poucas nuvens entornam do alto das montanhas, exatamente como cachoeiras em câmera lenta."
Tudo o que não tem direito de entrada na poesia contida e rarefeita de Bishop explode nessas cartas. E Lota não significou para a amiga apenas esse acréscimo de paz e bem-estar. Ninguém adivinharia, se conhecesse Bishop ligeiramente, como foi meu caso, que ela manteve durante a vida inteira uma luta sem quartel contra o alcoolismo. Mas nesse áureo período mesmo os porres foram mantidos à distância.
Em carta da Samambaia para sua médica (Bishop praticamente só fazia confidências quando fazia uma consulta), ela diz que só está bebendo uma ou duas vezes por mês. "E paro antes do pior, acho eu". Considera-se milagrosamente curada mas acrescenta: "Milagrosamente não, para dizer a verdade devo por assim dizer tudo isso a Lota e sua ternura. Eu me sinto quase como se tivesse morrido e ido para o céu sem merecer, mas estou, pouco a pouco, me acostumando."
Poemas da Samambaia
Estive com outros amigos na casa de Lota e Elizabeth, na Samambaia. Sei bem que o ano foi o de 1958 pois da visita saí com um livro chamado "Poema" e nele Bishop, ao assinar a dedicatória, colocou a data de 3 de setembro daquele ano. Sem ser exatamente bonita, ela atraía pela delicadeza do tipo, o cabelo louro, os olhos azuis, a pele de porcelana cor-de-rosa. Era espirituosa mas discreta, reservada. Mais para inglesa do que para americana.
Lota era bem morena, cabelos pretos, segura de si. Como outros casais no momento alto de uma união, as duas –sem precisarem falar entre si, voltadas inteiramente para as visitas– passavam a qualquer estranho a noção de que ia tudo muito bem naquela casa.
Aliás, profissionalmente, Lota se orgulhava do pesado trabalho que realizava, e Elizabeth ganhara, em 56, o prêmio Pulitzer de Poesia, dela dizendo então Robert Lowell (este sim um porrista explícito, que esteve no Rio naquele tempo e tentou namorar Clarice Lispector) que a poesia dela sabia alternar "uma suntuosidade veneziana com uma simplicidade Quaker".
Ao contrário das cartas, nas quais Elizabeth Bishop aparece como estiver, com um vestido caseiro, ou, caso esteja fazendo muito frio na Samambaia, com algum cachecol de boa lã mas de padrão já meio esmaecido, sua poesia está sempre atenta e composta, tensa, pronta para o instante que está vivendo e que pode ser o definitivo.
Mesmo assim, neste livro de "Poema" que dela guardei há um que é quase irmão das cartas, bem alegre e descritivo, intitulado "Chegada a Santos", e outro, o último, no estilo cerimonioso, mas que deixa ver de repente um momento de pura intimidade.
Chama-se "O Shampoo" e vai, delicado, dos líquens na rocha, que lembram desenhos na lua, a um apelo dirigido à paciência do ser amado: tudo teria sua hora, que não precisava ter vindo tão brusca. No entanto, ao chegar ao fim a segunda estrofe, uma absoluta familiaridade se impõe, para lá das imagens de musgo em pedra ou anéis na lua:
"As estrelas cadentes em teu cabelo preto/ num grupo brilhante/ tomam que rumo/ tão retas, tão cedo?/ Vem, deixa que eu vou lavá-lo nesta grande bacia de folha/ usada e reluzente como a lua."
Para se escrever o romance de Elizabeth Bishop e Lota Macedo Soares seria preciso conhecer melhor a vida e o trabalho realizado pela brasileira. A vida da poeta americana, sobretudo agora, depois de publicada sua correspondência, ficou, como se diz, um livro aberto.
Inclusive conta a morte de Lota –mas Lota deprimida, vencida pelo excesso de trabalho, e, imagina-se, por não contar mais com o apoio de Elizabeth, que deixaria o Brasil sem renegar os anos felizes mas sem ânimo para prolongá-los.
Em uma carta de 1964 Bishop informa sua médica que Lota, devido à cega dedicação ao Parque do Flamengo, ficara famosa e popular no Rio. Eram muitos os que queriam conhecê-la e mais ainda os que procuravam entrevistá-la. E Lota tinha belos planos para a educação de crianças no parque soberbo, arborizado por Burle Marx, à beira-mar plantado.
Mas a verdade é que "ela chega todas as noites do trabalho tão pálida e exausta que fico inquieta. (...) Ela pega no sono às 9h, 10h, às vezes com as roupas com que chegou da rua. Você acha que vitaminas podem ser úteis? O Parque do Flamengo é um projeto maravilhoso mas não quero que acabe com ela".
Com o romance, sem dúvida, acabou. A carta que venho de citar é de outubro de 64. Em uma outra, de dezembro de 65, Bishop conta a outro destinatário que está deixando o Brasil. "Espero que Lota vá poder se afastar do trabalho e vir ao meu encontro em maio. Mas neste preciso momento as coisas andam tão ruins para o lado dela que ela pode pedir demissão hoje mesmo e vir comigo."
Não foi o que Lota fez, e vêm afinal as cartas terríveis de março e setembro de 1967, a primeira datada de Petrópolis, onde Bishop cuida de Lota vítima de um "nervous breakdown", e a segunda de Nova York, onde Bishop recebeu de repente a visita de uma Lota que, ao que tudo indica, lá chegou para morrer nos braços da amiga. Suicidou-se com uma dose maciça de valium.
Procurei, para transcrição aqui, algum perfil de Lota. Encontrei de momento este breve retrato que dela traçou Carlos Lacerda, em seu "Depoimento". Lacerda está falando nas obras públicas que realizou como governador da Guanabara e pára de repente para dizer:
"No entanto, o julgamento das pessoas é uma coisa tão precária que a minha falecida amiga Lota Macedo Soares dizia que nada dessas obras valia. Lota era uma criatura admirável, filha do José Eduardo, sobrinha do José Carlos, a quem eu entreguei a incumbência de fazer o Parque do Flamengo. Cada vez que pedia demissão (isso acontecia quatro vezes por semana mais ou menos) ela amanhecia lá em casa e dizia: `Você fica com essa porcaria desse negócio de esgoto, de água, de não sei o quê, você pensa que alguém vai se lembrar de você por causa disso? (...) A única coisa de que vão se lembrar é que você fez o aterro. A vida inteira vão dizer que você fez o Parque do Flamengo'."

Texto Anterior: Spielberg assina contrato para projeto educacional
Próximo Texto: Cartas comprovam excelência como prosista
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.