São Paulo, sábado, 11 de junho de 1994
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'Cinema herdou narrativa clássica'

DA REPORTAGEM LOCAL

O argentino Ricardo Piglia, 52, um dos maiores escritores da América Latina hoje, tem-se voltado cada vez mais para o cinema.
Depois de ter um conto seu, "Luba", filmado por Alejandro Agresti, que ele considera "o melhor diretor argentino do momento", Piglia escreveu com Hector Babenco o roteiro do próximo filme do cineasta, "Foolish Heart".
Antes mesmo de concluí-lo, fez outros dois roteiros, ambos adaptações literárias: um do "Diário para um Conto", de Julio Cortázar, para a diretora tcheca Jana Bokova, e o outro do romance "El Astillero", de Juan Carlos Onetti, para o argentino David Lipszyc. Nenhum deles está pronto.
Autor de romances modernos e não-lineares como "Respiração Artificial" e "A Cidade Ausente", Piglia diz que sua literatura é muito influenciada pelo cinema. De Buenos Aires, ele falou por telefone à Folha sobre as relações entre os dois meios.(JGC)

Folha - Por que demorou tanto para ser feito seu roteiro com Babenco, "Foolish Heart"?
Piglia - Acho que um roteiro é como um romance: necessita tempo. Claro que não levamos todo esse tempo (dois anos) escrevendo. A história tem que descansar um pouco. Começamos quase com nada e a partir de poucos elementos construimos a história.
Folha - Como era o sistema de trabalho de vocês?
Piglia - Basicamente o que fizemos foi encontrar-nos e conversar, e sobre essa base eu escrevia as primeiras versões, depois voltávamos a trabalhar sobre o que eu havia escrito.
O ponto de partida era um pouco autobiográfico, no caso de Babenco, e também tinha algumas relações com histórias pessoais minhas, na Mar del Plata dos anos 60. Mas esse ponto de partida depois se transformou numa história que agora é totalmente autônoma.
Folha - Só o pano de fundo é comum à juventude de vocês?
Piglia - Sim. A história se desenrola em dois momentos: no início dos anos 60 e depois nos anos 80, com 20 anos de diferença. O mesmo personagem, na mesma cidade, em dois momentos decisivos de sua vida. Nos dois momentos o personagem tem uma relação intensa com uma mulher.
Este seria, digamos, o esqueleto da história. Em um caso há todo um contexto de grupo de adolescentes e jovens boêmios em um balneário na província de Buenos Aires nos anos 60, e depois há a história do homem bem-sucedido que volta a encontrar-se com seu passado num balneário de uma cidade contemporânea, que se desenvolveu e mudou tanto quanto o próprio personagem.
Portanto, é a história da relação dele com a paisagem e também de sua relação com o passado e com certas obsessões.
Folha - Seus romances e contos não são nada lineares, nem realistas, nem baseados em dramas psicológicos de personagens. No momento de escrever para o cinema, o sr. tem que esquecer essa experiência ou ela pode ser útil de alguma forma?
Piglia - Bom, a gente tem certas disposições pessoais, mas eu penso que no cinema há que trabalhar como um romancista clássico.
A narração clássica, que todos admiramos –os relatos de Dickens, de Tolstoi, de qualquer grande romancista clássico, com aquela fluidez da história–, me parece que este tônus narrativo está hoje no cinema –com todas as transformações que sofreu, claro.
Mas esse espírito, de contar uma história baseada num conflito entre personagens, me parece que se mantém no cinema, que herdou essa pulsão, essa tensão em direção ao relato.
E os romances contemporâneos que mais me interessam são outra coisa. Costumo dizer que hoje tentamos escrever romances que não se possam filmar (risos).
Me parece que o sentido de experimentação num roteiro de cinema tem um critério diferente: trata-se de não responder aos clichês da narração de Hollywood –e digo Hollywood no sentido metafórico, claro, porque há grandes escritores trabalhando lá.
Além disso, podemos dizer que hoje também o cinema tem a sua versão mais vulgar, que é a TV. Ela tornou o cinema cada vez mais "artístico" (risos), porque já existe outro meio que se encarrega da narrativa comercial mais vulgar.
Folha - Mas existe também um cinema não-narrativo, ou que não segue as estruturas de narração convencionais. Imagino que esse cinema tenha influenciado sua literatura.
Piglia - Sim. Eu me considero, como escritor, influenciado por alguns cineastas, como Godard.
E quando escrevo para cinema há uma influência inversa: Tolstoi, Stendhal etc., sobretudo pelo modo como construíam os conflitos. Porque também há que se levar em conta que os conflitos, nesses escritores, não eram tão convencionais como se pensa.
Mas é verdade que meus livros são influenciados por certas linhas do cinema contemporâneo, por essa capacidade que tem o cinema de manter a narração apesar da fragmentação. Nos casos dos roteiros que fiz, tratava-se de responder ao tipo de cinema que estava proposto nessas histórias.
Folha - Paradoxalmente, são histórias que pedem uma narração mais convencional que a dos seus livros.
Piglia - Eu não tenho esquemas prévios de narração. Nem mesmo descarto a possibilidade de algum dia escrever um romance linear, se a história exigir essa linearidade.
Me parece que o narrador tem que ser capaz de contar histórias de maneiras diferentes. Nesse sentido, no cinema fiz a experiência de narrar de um modo determinado e nos meus romances as formas de narração se modificam.
O que me interessa na literatura é contar muitas histórias ao mesmo tempo, colocar num romance vários romances.
Folha - O que o sr. conhece do cinema brasileiro?
Piglia - Bem, deixando de lado Babenco, com quem tenho uma relação muito próxima e cujo "Pixote" eu admiro muitíssimo, gosto dos filmes de Nelson Pereira dos Santos baseados em livros de Graciliano Ramos, "Vidas Secas" e "Memórias do Cárcere".
Além disso, gosto muito das comédias de Arnaldo Jabor, que trabalha muito bem a direção dramática e os diálogos. Gosto muito também de "Macunaíma", um trabalho muito interessante de adaptação literária.
Tenho uma relação um pouco mais distante com o Cinema Novo de Glauber Rocha. É algo que me parece interessante, claro, mas que tem mais a ver com uma poética latino-americana com a qual tenho pouca proximidade.
Minha literatura é mais urbana, mais ligada a uma tradição que está presente em Borges ou Cortázar, e não em García-Marquez ou em Carpentier.
Folha - O sr. tem a perspectiva de voltar a trabalhar com cineastas brasileiros?
Piglia - Eu gostaria muito. Mas minha estada no mundo do cinema é temporária. Vou voltar logo ao romance, e não se pode fazer duas coisas ao mesmo tempo.
Não me considero um roteirista. Sou um narrador que eventualmente pode narrar no cinema.

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