São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brincadeira com fogo

SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA

O governo, faz tempo, vem prometendo que agirá contra os preços e aumentos abusivos. Mas, enquanto os aumentos acontecem sempre hoje, a ação do governo começará sempre... amanhã.
Qualquer dona-de-casa, indo ao supermercado ou à farmácia, percebe variações brutais no preço do mesmo produto, de um dia para outro e de um para outro estabelecimento.
Muitas começam a perceber que as técnicas de venda, utilizadas pelas redes e cartéis, transformam-nas em joguetes, correndo de um lado para outro, atrás de aparentemente vantajosas promoções ou ofertas. Bom número delas, no seu dia-a-dia, começa a aprender as lições desse curso intensivo sobre oligopólios.
O governo tem os instrumentos legais necessários para combater essas práticas abusivas? Tem. Tem, por exemplo, a lei da usura, que deveria ser utilizada se houvesse cobrança de juros abusivos no Brasil. Tem a lei dos crimes contra a economia popular. Tem a lei delegada nº 4, de 1962.
Acontece que uma lei não é um mero objeto de contemplação, como um quadro, uma escultura, um filme. As melhores leis do mundo não funcionarão se as autoridades, incumbidas de sua aplicação, não as quiserem ou não conseguirem utilizá-las.
A aplicação das leis contra esses abusos não depende só do Executivo, a quem compete fiscalizar, policiar, autuar, multar, suspender, interditar; a quem compete colher os meios de prova, sem os quais o Judiciário não poderá manter essas sanções, ou aplicar outras, mais graves. Depende também do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Se as leis de que dispomos em abundância não funcionam é porque os poderes são ineficientes, ou não tão eficientes quanto deveriam.
A ineficiência do Judiciário, por exemplo, não resulta apenas da morosidade, que compromete qualquer tentativa séria de aplicar consequentemente a lei. Ela decorre, às vezes, de uma cultura jurídica complacente para com esses crimes.
Qualquer pessoa sabe o que quer dizer "juros reais". Mas uma certa espécie de juristas e juízes exige, do legislador, que explique tudo –como aquele personagem da televisão– "nos seus mínimos detalhes".
Se a própria lei não explicar o significado das expressões que utiliza, é como se ela inexistisse, porque o juiz estaria impossibilitado de entendê-la em seu significado corrente, ou de interpretá-la segundo a razão, os princípios e os usos.
O governo, agora, está passando recibo de ineficiência. Desistiu de aplicar as leis que existem, convencido, talvez, de que não tem força, capacidade ou recursos para aplicá-las. E decidiu, por isso, fabricar uma lei nova, draconiana, que atemoriza pela enormidade das penas que prevê.
Sabe o governo muito bem que leis dessa natureza são ainda mais difíceis de aplicar do que aquelas outras já existentes, mais brandas. Optou, porém, pela estratégia do terror (de verdade, ou de mentirinha?).
O pior, entretanto, não é o terror em si mesmo. Porque, com o passar do tempo, essas leis permanecem nas prateleiras como monstros de museu.
O ruim, o perverso, passa a ser a seletividade da sua aplicação. Porque num sistema em que as leis não funcionam de modo uniforme, e os processos em geral não andam, são as leis draconianas que alimentam as chantagens, as extorsões. E que, aqui e ali, podem ser reanimadas, para vitimar aqueles que, por uma ou outra razão, não agradem ao poder.

Texto Anterior: Empresas têm 2 opções nos EUA
Próximo Texto: Advocacia não exige prática nem experiência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.