São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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UMA CARTA INÉDITA

UMA CARTA INÉDITA
Leia a seguir, trechos de

Leia a seguir, trechos de uma carta inédita de Cacilda Becker, escrita em 7 de janeiro de 1942.

R. querido
O meu maior temor na vida é que descubram até que ponto sou ignorante e burrinha. Por isso é que quase não escrevo, mas enfim, vá lá, estou devendo para você uma carta. Não tenho inspiração nenhuma. Não posso escrever uma carta bonita, portanto.
Do que é que vou falar? De mim, de você, das coisas, de quê? Bem, vou contar o que é que está se passando com a minha alma. Há muito tempo que tenho desprezado a minha alma, ao ponto de não saber mais como é que eu sou. Há mais de dois anos que faço coisas contrárias aos meus desejos, isto é, coisas que têm um sabor material agradável, mas que sempre, sempre me ferem muito o espírito. Eu mesma provoco choques tremendos dentro de mim. Isso são coisas que você conhece muito. Assim, R., amo o que não devo amar, faço o que não devo fazer. Sinto dentro de mim três personalidades muito fortes. Uma que é a pura essência da arte, fluida, bela, e tem uma leve coloração azul. Outra é a minha consciência. É parda, pesada, sóbria e severa. Outra, muito material, tem uma cor de creme, com riscos avermelhados e roxos com um pouco de dourado! Eu as distingo perfeitamente.
Se a primeira personalidade vencesse, eu seria quase uma deusa, pura, quase inerte, passaria por tudo vibrando, refletindo como um cristal, e produziria sons, uns sons um pouquinho dissonantes, sabe como? Assim como se eu caísse dentro de uma cascata e as gotas frias me fizessem gritar de susto. Uns gritos mais agudos, e umas risadas que a gente dá sem motivo, um tanto desafinadas mas bonitas. Eu seria assim, se a primeira personalidade vencesse. Eu seria impalpável. (...)
Quanto à segunda personalidade, meu caro, eu quase não a distingo. É muito esquisita. A pobre coitada sofre tanto a força da primeira e da terceira que ainda não está bem formada. (É por isso que nem sempre raciocino com muita clareza.) Concorda com a audácia da terceira personalidade mas discorda dos seus desejos; condena a superficialidade da primeira, mas adora a sua forma, a cor e a verdadeira beleza que ela tem. É por isso que ela é parda. Cinzenta quase. Vive uma profunda melancolia e de cenho sobrecarregado, procurando resolver um problema sério, muito sério, decidir como um juiz imparcial qual das duas personalidades será a mais forte e a mais digna da vitória. Que tal, R.? Você a conhece muito. É essa pobre melancolia que às vezes você vê no meu rosto. É a consciência que pasma de mim mesma! Coitada! Se você soubesse depois as consequências! A primeira e a segunda, a princípio, ficam cheias de remorso e depois começam a rir, riem desbragadamente, loucamente! E sabe quem sofre? É uma coisa que ainda existe lá dentro, que eu não sei o que é. Fica compungida. Dá-me um aperto no coração! É algo que existe mas que quase nunca aparece! Nunca, nunca. Fica sempre desconhecida. Mas no momento desse choque das três personalidades ela surge de leve, mas persistente; parece assim uma gotinha d'água que treme, treme no canto aos meus olhos. É esquisito! E de repente some de novo...
E agora vamos à minha maravilhosa terceira personalidade. É notável. É cheia de dinamismo, brilhante, um pouco má, calejada sabe? Ambiciosa, tremendamente forte. É assim como os pedais de uma harpa que avolumam o som. É forte, intensa, humana; ama, chora e morde. Briga lá dentro, deseja, anseia e tem um prazer imenso em se encostar como um gigante em cima do azul e do cinzento. Se recosta como num divã, no fofo da primeira personalidade. Brinca com ela e de vez em quando tira um mi bemol ou um si sustenido, forte, intenso. É a maravilhosa harpista, que toca por tocar, para se divertir com a própria brincadeira e faz um barulho tremendo. Gosta de beijos, de fumo, de álcool. E tudo me mistura, se condensa, primeira, segunda e terceira personalidades, que dão assim essa confusão de nebulosa, parda, azul, dourada, avermelhada de som, melancolia, de um ritmo de swing, de balada, de samba, e às vezes de inércia e de espanto! Essa confusão humana, absolutamente Cacildeana! Eis o que sou! Eis a minha alma que nunca ninguém descobriu; que nunca alguém atingiu, mas que todas as coisas juntas tocam e fazem vibrar.
Eis por que gosto e desgosto de uma coisa só, eis por que eu mesma não me encontro....
Arre! R., cansei de me procurar. Até pareço uma grande orquestra, para quem não conhece instrumentos, e não distingue saxofone de clarineta.
Quanta bobagem! Mas quanta verdade.
Um beijo para você tocador do lá, desta sinfonia confusa
Cacilda
Não me peça para dizer o que significa o dó, ré, mi, fá, sol, lá, si nessa sinfonia... e muito menos adicionando bemol e sustenido
R., isto será loucura ou falta de assunto?

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