São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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Nem atlético nem estético

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA REVISTA DA FOLHA

Embora o futebol apareça no Brasil como tema para obras no campo da arte e da literatura, tem sido ele mesmo, em seu próprio campo, a melhor tradução estética do jogo. Formalizado na Inglaterra, difundido na Europa, o futebol ambientou-se aqui de uma forma peculiar.
Desembarcou no país de navio –uma bola trazida por um inglês– e começou a ser praticado por funcionários de companhias britânicas, difundindo-se entre a elite branca e elegante. A popularização, acelerada pelo profissionalismo e pontuada por uma acidentada crônica de discriminação e racismo, acabou, num exemplar processo antropofágico, por "abrasileirá-lo", dotando-o de certos traços distintivos. O jogo de fora tornou-se o jogo do lugar.
Quando pés de negros e mulatos passaram a tocar a bola sob o sol dos trópicos, o "rude esporte bretão" foi, por assim dizer, amolecendo e moldando-se a um ritmo diferente daquele que o forjou na Europa. Ao vigor e à virilidade imprimida ao esporte pelos ingleses, os brasileiros preferiam o virtuosismo, a trama urdida com malícia, a habilidade, a solução individual criativa.
Associado na cultura popular à música, à dança do capoeirista, ao passo esquivo do negro malandro, o público do futebol passou a valorizar aqui não o jogador capaz de proezas atléticas, mas o artista, capaz de reescrever a língua do jogo. Contra o valor da potência atlética, o valor da potência estética.
A tal ponto investiu-se de atributos "artísticos", que a própria finalidade do confronto –a vitória– deixou entre nós de ter o mesmo significado que entre os europeus. Dentro de certos limites, tornou-se comum para os admiradores do futebol no Brasil a idéia da supremacia da beleza sobre o resultado. O derrotado com um belo jogo é frequentemente mais exaltado do que o vitorioso sem arte.
Não por acaso, portanto, o futebol brasileiro, à diferença do europeu e mesmo do sul-americano espanhol, passou a ser identificado por um "conceito" único: o de futebol-arte, aquele praticado pelo craque que é um "gênio", capaz de criar lances que são uma "pintura". Conceito que não se deve ao simples triunfalismo, repetido que é, com variações, mundo afora –para os franceses é o "futebol-samba", para os italianos o "calcio fantasia".
Foi este futebol poético, sinuoso, que dá aos pés astúcias de mãos (no verso de João Cabral), que se tornou o espelho da brasilidade durante um certo período de nossa história –enfaticamente aquele que vai de 50 a 70.
O país de 58 e 62 –quando se consolidou o triunfo do futebol-arte e surgiram os dois artistas maiores da bola, Garrincha e Pelé– era um país que via a si mesmo como criativo e talentoso. Era o país da bossa nova, o país que erguia uma nova capital, assombrando o mundo com sua arquitetura moderna, o país do Cinema Novo, da poesia e da arte de vanguarda, o país que não disfarçava o sonho de construir uma sociedade na qual o desempenho e o prazer, o ócio e o negócio, o progresso e a natureza pudessem passear juntos e sorridentes por um dia ensolarado.
Bem diferente o país que se tornou: este monstro a meio caminho de tudo e de si mesmo –nem mais a original e rica reserva tropical, nem a potência econômica; nem mais o criativo e promissor "país do futuro", nem o futuro.
Sintomático, portanto, que o futebol, campo simbólico privilegiado do país, encontre-se também a meio caminho: nem a valorização da "arte" que sobrevive nos campos, nem a organização tática e a determinação européias.
O que parece estar em jogo no imaginário que hoje se articula em torno do futebol é a redefinição da própria brasilidade, a recriação da auto-imagem do país. Afinal, devemos insistir no Brasil da inventividade, da habilidade, da sinuosidade, da "arte" ou isto já não nos representa –e precisamos, na realidade, tratar de obter resultados, valorizando a organização e a disciplina? E, ainda: poderemos chegar a um equilíbrio, a uma integração dos dois pólos –ou, como temos visto nos últimos anos, ambos continuarão se anulando mutuamente no hibridismo estéril que tenta nos representar num campo de futebol?
Talvez tudo isso esteja sugerindo uma modificação efetiva: a perda do lugar privilegiado do futebol como "espelho" da brasilidade e sua crescente desvinculação da auto-imagem do país. Afinal, trata-se só de um jogo –mesmo que seja uma obra coletiva de arte.

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