São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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"Nunca vi alguém elevar a emoção àquele nível"

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Walmor Chagas, último marido de Cacilda Becker, com quem teve uma filha, Maria Clara, 30, sempre se esquivou de falar sobre a atriz. ‘‘Eu me sentia constrangido’’, explica. Receoso de mitificá-la, esperou que outros o fizessem. E muito o fizeram nesse últimos 25 anos. ‘‘Quando percebi que não era o único a considerá-la um ser de exceção, perdi o acanhamento. Agora posso falar sobre Cacilda’’.
Também cria do Teatro dos Estudantes do Brasil, o gaúcho Walmor Chagas foi parceiro de Cacilda no palco, como intérprete, diretor e produtor. Financiado pelo pai, montou com ela uma companhia teatral independente, Teatro Cacilda Becker, sediada em São Paulo, mas frequentemente com o pé na estrada. Excursionaram por todo o Brasil, com temporadas em Montevidéu e Lisboa, a bordo de autores tão distintos como Tennessee Williams (‘‘A Noite do Iguana’’), Friedrich Duerrenmatt (‘‘A Visita da velha Senhora’’), Edward Albee (‘‘Quem Tem Medo de Virginia Wolf?’’) e Abílio Pereira de Almeida (‘‘Em Moeda Corrente no País’’).
Há anos no Rio, onde se estabeleceu como produtor teatral e ator de cinema e televisão, Walmor concedeu à Folha a entrevista que se segue.

Folha - Quando foi que você e Cacilda se conheceram?
Walmor - Durante os ensaios de ‘‘Maria Stuart’’, no TBC, em 1954. Foi sua ‘‘rentrée’’ no TBC, de onde estivera afastada por causa das filmagens de ‘‘Floradas na Serra’’, na Vera Cruz. Começamos logo um namoro. Depois da terceira peça que fizemos juntos, ‘‘Gata em Teto de Zinco Quente’’, nos casamos. O casamento durou 12 anos, com duas interrupções, em 1963 e em 1968.
Folha - Mas você já a tinha visto no palco antes, não?
Walmor - Ah, sim. Em 1951, ainda morando em Porto Alegre, passei por São Paulo com a diretoria do Teatro do Estudante, e a vi em ‘‘Pega Fogo’’. Foi uma revelação inesquecível. Parecia que eu estava indo ao teatro pela primeira vez. Até então eu não sabia que o teatro tinha toda aquela potencialidade psicológica. Eu me desmontei.
Folha - Como você descreveria a presença de Cacilda no palco?
Walmor - Como uma louca. Ou melhor, como uma fera que a qualquer momento poderia saltar sobre cada um dos espectadores. Nunca vi alguém elevar a emoção aquele nível. Perto dela eu me sentia um preguiçoso, tal a intensidade do salto tríplice emocional que ela dava em cena. Cacilda era um perigo.
Folha - E acabou sendo um perigo para ela própria.
Walmor - Sem dúvida. Cacilda estava sempre tensa e com dor de cabeça. Aquele facho-feixe de nervos com que recheava suas interpretações, tornando-a única e apaixonante, a obrigava a tomar aspirina antes ou depois do espetáculo. Era o seu remédio de camarim.
Folha - Que recordações você guarda do dia em que ela morreu?
Walmor - Ela tomou a última aspirina no 42º intervalo do primeiro para o segundo ato de ‘‘Esperando Godot’’, enquanto fumávamos um cigarro depois do cafezinho.
Conversávamos sobre o disparate de estarmos ali, encenando uma peça dificílima e desgastante para 80 estudantes de um cursinho pré-vestibular, a preços populares e no meio da tarde. Tínhamos acabado de chegar da Europa, estávamos sem dinheiro, o ambiente no Brasil estava péssimo, e ‘‘Esperando Godot’’ não era exatamente uma peça comercial. Quando soou o segundo sinal para entrada em cena, seu aneurisma arrebentou.
Folha - Ela tinha medo de morrer?
Walmor - Não. Nada a pertubava. Ela se via com 80 anos, de bengala, representando no palco. Embora comesse muito pouco, por ser ansiosa e estar sempre apressada, procurava ter uma vida saudável. Tinha mania de comer gema crua com limão, por exemplo.
Folha - E medo da velhice, ela tinha?
Walmor - Também não. Encarava a velhice como uma coisa natural. Acho que ela a enfrentaria com a maior tranquilidade.
Folha - Além de representar, do que mais ela gostava?
Walmor - De religião. Lia muito a Bíblia, livros sobre histórias das religiões, adorava Teilhard de Chardin. Era fascinada pela religiosidade do ser humano. Não ia à missa. Preferia ser religiosa a seu modo, sendo extremamente generosa com os outros, ajudando os amigos em tudo.
Folha - Como era o convívio diário com ela?
Walmor - Em casa, longe do teatro, ‘‘desincorporada’’ dos personagens, era femininamente encantadora, com as preocupações comuns de educar os filhos, agradar o marido, cuidar da mãe, ser gentil com os amigos, principalmente nas folgas das segundas-feiras. Nos outros dias, já entrava no frenesi teatral a partir das quatro da tarde. Precisava chegar ao teatro duas horas antes do espetáculo. Em geral, era durante estas duas horas que a, dor de cabeça aparecia.
Folha - Que defeitos ela tinha?
Walmor - Como toda atriz, era egocêntrica, só pensava nela, era seus papéis, na sua carreira. Também era narcisista, como qualquer ator ou atriz. É difícil conviver com atores. Por isso nos separamos duas vezes.
Folha - Se pudesse ter gravado em teipe toda a carreira dela, que momentos especiais você escolheria para um clip antológico?
Walmor - Abriria o clip com algum trecho de ‘‘Pega Fogo’’ e o encerraria com outro de ‘‘Esperando Godot’’. Curiosamente, dois papéis masculinos. Só esses dois exemplos dariam conta da sua versatilidade. Preencheria o resto do clip com cenas de ‘‘A Noite do Iguana’’, ‘‘A Visita da Velha Senhora’’ e ‘‘Quem Tem Medo de Virginia Woolf’’? Puxa, ia ser difícil fazer uma seleção.
Folha - É verdade que ela se sentia frustrada por não ter feito carreira no cinema?
Walmor - Muito. Para ela, a modernidade do ator estava no cinema, não no palco. Ela acreditava tanto numa carreira cinematógrafica que se sujeitou a por jaquetas em seus dentes, por sugestão do diretor de fotografia de ‘‘Floradas na Serra’’, e não as tirou depois das filmagens. Só que os filmes que ela esperava fazer não vieram. O pessoal do Cinema Novo nunca se interessou por Cacilda.
Folha - Na televisão, ela não teve melhor sorte.
Walmor - Ela nào deveria ter se sujeitado àquelas peças e àqueles vídeos na TV. Eles não fazem jus ao seu talento histriônico. Eram produções pobres, ruins e desestimulantes, que só fizeram mal à sua imagem.
Folha - Se ela ainda estivesse viva, a telenovela seria o seu palco número um?
Walmor - Não creio. Cacilda não teria se adapatado ao acanhamento e ao primarismo da TV. Veículo de massa, para uma atriz como ela, só o cinema, que possui outro tipo de elaboração. Como o cinema brasileiro não existe mais, ela estaria até hoje no teatro. Pensando bem, ela morreu na hora certa.

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