São Paulo, domingo, 12 de junho de 1994
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Jackie, a Madonna enlutada de Michelangelo

CAMILLE PAGLIA
DA "THE NEW REPUBLIC"

A morte de Jacqueline Bouvier Kennedy Onassis inspirou demonstrações de amor e respeito, vindas de pessoas de todas as classes sociais e todos os partidos políticos. Ela foi a mulher mais famosa do mundo num longo período que se seguiu à época das grandes estrelas de Hollywood e antecedeu a de nossas próprias princesas pop, Diana e Madonna.
Jackie não teria conservado o afeto de milhões de pessoas durante várias décadas se fosse apenas um modelo de moda e elegante bom gosto. Foi seu batismo pelo fogo que a elevou à categoria de divindade. Seu comportamento extraordinário durante e após o assassinato de seu marido deu a Jackie um lugar na história.
Na limusine manchada de sangue em Dallas, ela foi forçada a incorporar a arquetípica Pietà (quadro ou escultura da Virgem Maria segurando em seu colo o corpo morto de Cristo). Aninhando a cabeça despedaçada do presidente em seu colo, ela se tornou a Madonna enlutada de Michelangelo, dividida entre o horror e a admiração pelo corpo ferido de seu belo filho. O católico Andy Warhol prestou uma homenagem a Jackie no retábulo quadriculado que fez dela, retratando-a como }mater dolorosa nacional.
O heroísmo de Jackie foi possível por causa de um fator que foi esquecido em sua célebre biografia. Todos sabem sobre sua dedicação aos esportes e à boa forma física, sobre o amor que dedicava aos cavalos desde criança. O que se admira em sua conduta é o adestramento –a arte inglesa de lidar com cavalos, estilo aristocrático que vem do }ancien régime pré-revolucionário do século 18.
Quando as pessoas dizem que Jackie é }a coisa mais próxima à realeza vista na democracia americana, é isso que querem dizer. O adestramento na equitação é uma forma de minimalismo radical, de imobilidade e repouso hierárquico. Os sinais que o cavaleiro envia ao cavalo são invisíveis. Jackie, representando o papel de adorno perfeito, era mestre da manipulação e do controle –não do campo psicológico, em que viveu à mercê de homens adúlteros, mas do físico, que ela elevou ao mais alto nível de refinamento.
Na cultura grega antiga, a imagem do cavalo e do cavaleiro representava a vitória da razão, na eterna batalha da civilização contra a anarquia. Quando o casamento de seus pais desmoronou, a muito jovem Jacqueline Bouvier encontrou no ritualismo público da equitação uma estrutura de vida que lhe foi útil até o fim da vida. Ela se transformou em guardiã das formas –colocando-se ao lado de Lyndon Johnson quando ele tomou posse no avião presidencial, teimosamente comemorando o terceiro aniversário de seu filho no mesmo dia do enterro de seu pai.
O paradigma educativo existente na equitação –o processo de adestramento– se concretizou no êxito que Jackie obteve na criação de dois filhos despretenciosos, que escaparam do turbilhão de autodestruição que frequentemente envolve herdeiros de celebridades.
Ao refletir sobre a maneira estóica com que Jackie administrou a si própria e o que a cercava depois do assassinato, pode-se lamentar a falta de respeito com que minha geração –dos anos 60– tratou o artifício da etiqueta. Enquanto fugíamos do sufocante conformismo dos anos 50, a indiferença com que víamos os aspectos positivos da convencionalidade nos deixou presos no grande atoleiro da cultura das vítimas.
A graça clássica que Jackie demonstrou sob pressão, sua tranquila rejeição a qualquer queixa ou autocomiseração, demonstram a redenção possível na repressão, na sublimação e no silêncio.
A equitação também deu a Jackie ótimos reflexos. Uma das afirmações absurdas constantes de }A Woman Named Jackie, de C. David Heymann, é que quando ela subiu para a parte traseira da limusine, em Dallas, estaria tentando fugir para se proteger. Que Apolo nos preserve dos biógrafos que se baseiam em outros livros! Se Jackie estivesse buscando proteger-se, a posição agachada adotada para saltos na equitação a teria colocado no chão do carro. Ao tentar agarrar um pedaço do crânio de seu marido, ela se colocou diretamente na linha de fogo, um ato de grande coragem que nunca foi devidamente reconhecido.
Na condição de diva que seduzia os }paparazzi do mundo inteiro, Jackie tinha interessantes ambiguidades. No meu livro }Sexual Personae, eu comentei sua semelhança com imagens perversas, possivelmente hermafroditas, na obra de Aubrey Beardsley e citei uma anotação no diário de Cecil Beaton, na qual ele registra o }leve toque de bigode de Jackie e }seus pés e mãos grandes, como os de um rapaz. Diferentemente de sua rival romântica, Marilyn Monroe, Jackie não baseava seu poder feminino em seios generosos. Sua silhueta de manequim era linear, ao estilo balé clássico de Audrey Hepburn. Seguidora de dietas rigorosas, Jackie talvez tenha sido uma quase anoréxica, mas nunca se percebeu isso, talvez por causa de seu rosto largo e sereno, como uma lua, com seu olhar sonhador e seu sorriso de Mona Lisa.
Na iconografia moderna Jackie pertence à categoria Gene Tierney de morenas pensativas, misteriosas e introvertidas. Sua voz era cochichante e pouco desenvolvida e seus olhos grandes e assustados, mas eles possuíam uma determinação férrea. A influência de Jackie como lançadora de tendências de personas femininas modernas pode ser constatada em Anouk Aimée, Mary Tyler Moore, Marlo Thomas, Barbara Parkins e Stefanie Powers. É um estilo heterossexual vibrante e maduro, fisicamente ativo e mentalmente alerta, mas sem a estridência e a raiva feministas –um modelo ainda atraente de atenção aos homens, mas sem subserviência a eles.
O que é indelével agora é a firmeza e a coragem de Jackie, enquanto sobrevivente no esporte sanguinário da política masculina. Alguma estranha lei da retribuição dizimou os praticantes do jogo de poder em Dallas e poupou as mulheres a seu lado, como numa tragédia grega como }As Troianas, de Eurípedes. O tailleur manchado que Jackie recusou-se a trocar naquele dia documentou as polaridades da condição feminina: o cor-de-rosa pastel da meninice e do romantismo, e o vermelho cor de sangue barbárico do nascimento e da morte. Aquela roupa, como a Mortalha de Turim, foi um pictograma da história de sua vida, com suas gravidezes fracassadas e sua viuvez. Jackie era uma mulher que pensava em imagens universais: um jardim de rosas, uma chama eterna, um cavalo sem cavaleiro, nomeado em homenagem a seu pai, cuja rebeldia durante o desfile fúnebre expressou a libido masculina incontrolada, único animal que Jackie não conseguiu domar.

Tradução de Clara Allain

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