São Paulo, segunda-feira, 13 de junho de 1994
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Os créditos perderam crédito no cinema

SERGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A volta às lides do genial Saul Bass, 73, patrocinada por Martin Scorsese, passou em brancas nuvens pela nossa crítica. Ninguém parece ter notado que eram deles aquelas flores que nos créditos de "A Época da Inocência" desabrocham como viragens do tempo de Thomas Edison. O que vale dizer, do tempo de Edith Wharton. Muito sutil para as rudes retinas caboclas.
O mais brilhante designer que o cinema já conheceu, Bass especializou-se em assegurar uma abertura de ouro para qualquer filme cujos créditos lhe fossem comissionados. Prestou inúmeros serviços a Otto Preminger e Alfred Hitchcock, chegando a desenhar para este a mais célebre sequência de "Psicose", a do assassinato no chuveiro. Salvou muitos filmes da débâcle total, resgatando previamente sua abertura, autênticos curtas, cintilantes de imaginação e cinestesia.
Sua "rentrée", contudo, não significa que os créditos cinematográficos estejam em fase de revalorização. Ao contrário, eles estão saindo de moda.
Cada vez mais se dissemina a impressão de que os créditos, na verdade, são um estorvo, um obstáculo narrativo, uma herança anacrônica da literatura. "Os livros, sim, precisam de página de rosto, com o título, nome do autor e da editora etc", argumentou Steven Spielberg, em recente reportagem do "Variety" sobre a guerra que há tempos os cineastas americanos movem contra a ditadura dos créditos. "Que diferença faz que eles venham no começo, no meio ou no fim do filme?", cobrou Oliver Stone.
Faz diferença, sim. "Eles retardam o que a platéia mais quer ver", alegou Spielberg, avesso à solenidade de que se revestem os tradicionais créditos de abertura. "Além do mais, o espectador prefere saber quem é quem ou quem fez o que no filme depois de assisti-lo".
Jerry Molen, co-produtor de "O Parque dos Dinossauros" e "A Lista de Schindler", dá detalhes: "Banir os créditos das primeiras imagens de um filme tornou-se uma opção criativa que só tende a conquistar novos adeptos. Sem eles, os filmes começam de maneira mais simples e direta". E com maior vigor, conforme os irmãos Coen acabam de provar em "Na Roda da Fortuna".
Clint Eastwood já sabia disso há tempos. Ele não apenas aderiu à idéia de entrar de sola nos filmes sob sua direção como convenceu o diretor de "Na Linha de Fogo" a fazer o mesmo. David Valdes, produtor-executivo das produções de Eastwood, tem uma explicação sobressalente para a opção de seu chefe: "Clint não aguentava mais ver seu nome repetido tantas vezes na tela".
Até algum tempo atrás, um ator que também fosse produtor, diretor e co-roteirista de um filme corria o risco de ter seu nome estampado pelo menos oito vezes durante a projeção: quatro na abertura, quatro no final. Isto porque o sindicato dos diretores exigia o uso de créditos na abertura, deixando a critério dos produtores a repetição dos mesmos, com outra disposição, no final. A exigência só foi abolida em 1988.
Antes, só em casos excepcionais o sindicato permitia que os créditos fossem despachados para o último rolo. Ou simplesmente deslocados para depois da sequência inicial.
Em 1934, a dupla Ben Hecht- Charles MacArthur conseguiu impor a "Crime Sem Paixão" um preâmbulo fora do padrão habitual. O filme começava com o cano de um revólver em primeiro plano, que em seguida disparava um tiro. Corte para uma poça de sangue de onde as três Fúrias da mitologia grega saíam, esvoaçantes, sobre os arranha-céus de Manhattan, semeando crimes passionais e quebrando vidraças, cujos estilhaços compunham contra o céu o título do filme: "Crime Without Passion". Ulá-lá!
(Como tantas bossas atribuídas a Welles, também esta não foi inventada por ele. Em 1928, o elenco de "The Terror" fora apresentado pela voz do ator Conrad Nagel. François Truffaut apelaria para o mesmo efeito em "Fahrenheit 451", com a justificativa de que na distopia por ele retratada a palavra escrita não tinha condições de sobreviver). Nem todos os noviços que chegam a Hollywood com a bola cheia gozam das mesmas regalias concedidas a Welles. Há 23 anos, Peter Bogdanovich penou meses e meses para convencer os mandarins de sua entidade de classe de que "A Última Sessão de Cinema" ganharia muito mais impacto emocional se os seus atores só fossem apresentados depois do desfecho. Naquele mesmo ano, Dennis Hopper conseguiu deslocar os créditos da abertura de "The Last Movie" para quase o meio do filme (um recorde na especialidade), sem consultar o sindicato. Como se tratava de uma produção marginal, nada aconteceu.
William Friedkin e George Lucas não tiveram a mesma sorte. Friedkin pensava em iniciar "O Exorcista" sem créditos, mas foi obrigado a seguir as normas usuais. Lucas pagou US$ 250 mil de multa por ter posto o nome do diretor Irvin Kershner só no final de "O Império Contra-ataca". Nem ao saber que Kershner havia autorizado a mudança, o sindicato recuou de sua decisão. Injuriado, Lucas desligou-se do sindicato.
Escrúpulo idiota. Não o de Lucas, mas o do sindicato, obviamente pressionado pela vaidade dos seus integrantes. Idiota porque, afinal de contas, inútil. Pois a partir do momento em que se permitiu a superposição dos créditos a uma sequência, a atenção maior da platéia deslocou-se dos letreiros para a ação descrita pela câmera. E assim, iniciar um filme tornou-se mais um desafio à imaginação.
Nem todos, é verdade, aprenderam direito a lição dada por Welles –sobretudo em "A Marca da Maldade" (The Touch of Evil). Robert Altman aprendeu a ser imaginativo e exuberante. Mas, apesar de engenhosos, exuberantes e longos, os intróitos de "O Jogador" e "Short Cuts" perdem, em duração, para a abertura de "Era Uma Vez no Oeste", de Sergio Leone. Com 12 minutos, ainda é o recorde da especialidade. Para Leone, filme não era livro, era ópera –e, como toda ópera, dado a excessos.

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