São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 1994
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O vampiro e o banco de sangue

FÁBIO FELDMANN

FABIO FELDMANN
As harpias atacam novamente, assanhadas e agressivas. Tudo porque estão mexendo em seu brinquedo predileto: o capitalismo "made in Brazil". Digo isso a propósito de reações furibundas ao projeto que tipifica e combate o abuso de poder econômico, aprovado na semana passada no Congresso Nacional e agora transformado em lei pela sanção presidencial.
Diretamente ou por meio de porta-vozes, alguns setores empresariais veicularam interpretações de má-fé, segundo as quais a lei é uma aberração jurídica, destinada a aterrorizar a atividade econômica com um absurdo intervencionismo de Estado etc. etc.
Por falar em aberração, é curioso verificar como aqueles setores vivem em contradição. Em tal grau que a situação já está a exigir um bom psiquiatra. Não sei em que patologia se enquadram, mas, a olho nu, parece coisa grave.
Ao mesmo tempo em que clamam por modernidade, não abrem mão de seus "direitos adquiridos" e rapidamente passam do cavalheirismo à histeria quando se acena com a abertura de seu capitalismo de senzala, ou seja, aquele que alia as delícias do lucro à ausência de risco e de responsabilidades sociais.
Esquecem que essa concepção é um dos últimos monturos do entulho autoritário a ser varrido para que se instale no país uma democracia realmente moderna, na linha dos países "de Primeiro Mundo", que esses empresários, em artigos, entrevistas e declarações de amor dizem admirar tanto.
O Japão? Ah, o Japão! Que maravilha, que eficiência, que estatísticas excitantes! Mas lá no Japão há uma severa lei antitruste, pois os japoneses, como os americanos, os alemães e os demais superdesenvolvidos sabem que não há anjos nesse ramo e nada mais justo que exista uma referência clara pela qual todos se pautem e que estabeleça penas para aqueles que resolvam fazer o jogo do "eu-sozinho", contra o interesse da maioria e contra a livre concorrência.
O controle do abuso de poder econômico não é invenção de centro acadêmico, nem da Albânia, nem de Stalin, como querem, nas entrelinhas, fazer crer.
É um instrumento realista surgido com o desenvolvimento do capitalismo e, em países como o Brasil, é especialmente necessário.
Aqui há, sim, vampirismo econômico por parte de parcelas do empresariado que não hesitam –ou não hesitavam– em utilizar a frouxidão da lei anterior para atacar a jugular do próximo, seja esse o consumidor ou outros empresários desavisados e/ou indefesos.
O mais engraçado disso tudo é que alguns que partiram para desqualificar a lei recém-nascida são os mesmos que desqualificam o Estado e esquecem que o Estado brasileiro é a cara deles. Ou seja, não chegamos onde chegamos só por causa de funcionários públicos ineficientes ou parlamentares e governantes caricaturizados e venais.
A outra face da moeda dessa esculhambação é a instrumentalização da corrupção e da ineficiência por parte de agentes econômicos poderosos que, de maneira abusiva, antiética e voraz, transformaram a coisa pública em banco de sangue na mão de vampiro.
Aqui há, sim, abuso; há uma feroz insensibilidade e não se pode nem cogitar de deixar que o poder econômico se auto-regule, sem controle social. Usando um exemplo simples, por que não permitir que os motoristas ajam no trânsito segundo sua ética e seu particular bom senso? Por que as leis? Por acaso são uma estigmatização daqueles que têm carro, uma medida totalitária a tolher a liberdade de dirigir?
Nós sabemos que tanto no trânsito quanto na economia há delinquentes e à primeira vista todos parecem bons rapazes; têm a mesma aparência externa das pessoas de bem. Mas uma vez ao volante de seu carrão ou de um setor econômico fazem estragos incríveis e muitas vezes fogem sem socorrer as vítimas.
Para aqueles que, tanto no trânsito quanto na economia, adotam um comportamento civilizado, por convicção e espírito de cidadania, não há por que temer penalidades, por mais severas que sejam. É fundamental que elas existam. Ao contrário do que dizem frasistas "blasés", às vezes economia é caso de polícia, sim. Veja-se o que acontece atualmente e não será preciso dizer mais nada.
Há terroristas à solta, indiferentes à sorte da economia, do mercado e da população. São meros aproveitadores e não há sentido em tratá-los com luvas de pelica. Para evitar, porém, arroubos, demagogias e repentes, nada melhor do que uma lei que, se de um lado é severa, de outro garante toda uma processualística judicial e direito de defesa.
No longo prazo, a lei é um instrumento efetivo de modernização e jamais se pretendeu que fosse um produto perfeito ou milagroso. Todos os políticos e empresários sinceramente empenhados em fazer deste país uma nação sabem que a lei amadurecerá nos fóruns que fazem parte intrínseca do sistema de controle criado: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e o Poder Judiciário.
A oportunidade de discussão e votação de lei antitruste permitiu desmascarar os falsos liberais que defendem o mercado desde que ele esteja sob seu estrito controle. Permitiu, por outro lado, sentir a sensatez e a tranquilidade com que empresários realmente modernos receberam a emergência da lei antitruste, entendida como um caminho necessário de organização econômica.
Um lembrete final: chegou o momento de separar o joio do trigo, ou seja, os "homens de negócio" dos verdadeiros empresários, que vêem na livre concorrência um vetor de inovação e real modernização do país, atendendo aos reclamos de justiça social e uso sustentável dos recursos naturais. Fora disso, estaremos legitimando o que há de arcaico no país, descartando a possibilidade de transformá-lo em algo palatável.

FABIO FELDMANN, 39, é deputado federal pelo PSDB de São Paulo e presidente da Fundação Nacional de Ação Ecológica. É autor do projeto da nova lei antitruste.

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