São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 1994
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Proposta de novo conceito de déficit público

JOSÉ VALNEY DE BRITTO

JOSÉ VALNEY DE BRITO
A definição do déficit público como "A diferença entre o custo e o valor dos serviços públicos" em vez de "o que os governos gastam além do que arrecadam" parece explicar melhor sua influência no processo inflacionário.
Postula a teoria econômica que "a forma" como o poder público financia esta falta de dinheiro pode ser a fonte básica do processo inflacionário. Se o Tesouro emite e vende títulos de longo prazo e juros módicos não há estímulo inflacionário. Se o governo emite moeda, manual ou indexada, então surge a inflação.
Parece haver entre os especialistas o consenso de que a "desordem nas finanças públicas da União, Estados e municípios" é a vilã primeira da crise inflacionária brasileira. A seguir vem a indexação generalizada da economia que a realimenta.
Há, entretanto, países com déficits, no conceito clássico, aparentemente muito mais elevados do que os brasileiros e com dívidas públicas muito maiores, como proporção do PIB, e no entanto com taxas de inflação muito baixas. O Brasil já teve períodos com equilíbrio fiscal aparente e com elevadas taxas de inflação.
A explicação que propomos é que o déficit brasileiro pode ser extraordinariamente maior se avaliado pela diferença entre "preço" e "valor" dos serviços públicos.
Os "custos" dos serviços de governo não são medidos de forma individualizada, nem tampouco lhes são fixados "preços unitários". São difusos e prestados "indistintamente" a todos os cidadãos. Para eles não se estabelecem unidades de produto, nem quantidades e qualidades produzidas, nem respectivos custos unitários.
O custo é medido globalmente pelo dispêndio do governo. Este custo, cobrado da sociedade através dos impostos, é o "preço". Lembremo-nos, entretanto, que vários serviços, quando prestados concomitantemente pelo setor privado, como educação, saúde e previdência, por exemplo, são incluídos no PIB como qualquer outro produto.
O mercado entende os serviços públicos como bens econômicos, iguais a todos os demais da economia. Por essa razão os indivíduos têm uma forte "percepção do valor" desses bens. É como se à "mão invisível" do mercado de Adam Smith se pudesse acrescentar também "sentidos".
A noção de valor não é quantitativa nem exata e varia de indivíduo para indivíduo. Mas a direção geral pode ser conhecida. É possível perceber se a distância que a população vê entre o que sai do seu bolso como impostos e contribuições e o que recebe e volta em benefícios é pequena, média ou grande.
É generalizada a constatação de que a maioria dos serviços públicos tem deteriorado em quantidade e qualidade. A sociedade também percebe que paga, e caro, por atividades meio e, pior, por muitas outras que nem sequer redundam em serviços úteis e necessários ao público.
Ineficiência, desperdício e corrupção tornam as atividades "fins" caras, insuficientes e de baixíssima qualidade. Não é difícil acreditar que o público brasileiro avalie que seu governo "vale" apenas um terço do que custa e assim o déficit real poderia atingir grandezas da ordem de 20% do PIB.
A inflação surge da reação dos agentes econômicos. A "percepção" de estar pagando caro por produtos que não valem e que não satisfazem suas necessidades básicas leva à sensação de redução de renda. Cada indivíduo, segundo sua própria inserção particular no mercado, suas limitações e possibilidades, procura compensações.
Cada um busca aumentar sua renda para suprir no mercado privado os serviços que lhe são negados. Empresários aumentam seus preços, trabalhadores, individualmente ou através de sindicatos, demandam aumentos salariais. Autônomos elevam seus honorários e assim é detonado o processo inflacionário. A reação é silenciosa e atomizada. Não ocorrem explosões de "furor cívico", como provavelmente aconteceriam em outros países. Talvez resultado de características peculiares da sociedade brasileira.
As implicações da validade da hipótese aqui formulada, na determinação de políticas econômicas podem ser muito amplas:
a) O equilíbrio entre receita e despesa do setor público não é necessariamente significativo. Talvez não seja a variável mais importante.
b) A obtenção do equilíbrio orçamentário, politicamente tão difícil, possivelmente não trará a anunciada baixa inflação.
c) Se a chave da questão é a qualidade, produtividade e eficácia dos serviços públicos, será inútil a tentativa do governo ser eficiente apenas na margem. Ou seja, não adianta tentar prestar um serviço novo e adicional eficiente, com o dinheiro do déficit, se ainda existir algum serviço que não tenha os mesmos padrões de qualidade. Enquanto houver uma única unidade de serviço de má qualidade, segundo a avaliação de seus usuários, haverá déficit.
d) Para produzir serviços de alta qualidade os governos eficientes podem manter déficits, desde que não demandem grandes investimentos e que sejam de maturação quase imediata após os dispêndios.
Embora seja certo que o Plano Real trará alguns meses de taxas de inflação relativamente baixas, provavelmente logo se iniciará novo ciclo de elevação. As chamadas reformas estruturais do sistema tributário e da Previdência –em qualquer hipótese tão necessárias–, mesmo se afinal realizadas, não asseguram inflação baixa permanente.
O cerne do problema, a ineficiência dos serviços públicos, não estará sendo atacado, não havendo portanto mudanças objetivas que justifiquem a estabilização. E insistindo-se na política de juros altos, então a volta da inflação será ainda mais rápida por seus efeitos na concentração de renda e no aguçamento do que denominamos de "conflito distributivo generalizado".
Esta é a permanente disputa por renda decorrente das reações normais de todas as pessoas de resistir a reduções na sua renda e de procurar melhorar, ou no mínimo manter, seus níveis de ganho. É o que explica a reação já mencionada dos agentes.
Enfim, se nossa análise estiver correta, a política econômica deveria centrar seu esforço na obtenção de racionalidade, eficiência e eficácia do setor público, em todos os seus níveis. Este é o grande desafio. A moderna teoria administrativa poderia dar excelentes contribuições, especialmente para romper as resistências corporativas e criar metodologias de produção com ganhos de qualidade e produtividade.
A tarefa mais difícil talvez seja convencer uma grande parcela dos trabalhadores da sua obrigação de prestação de bons serviços e introjetar-lhes o senso de "missão". Deve ficar-lhes claro que só tem "valor" o trabalho no qual possa ser claramente identificada a utilidade, direta ou indireta, para o público. No dilema comum encontrado na argumentação de tantos trabalhadores entre "trabalha-se mal porque ganha-se mal", ou "ganha-se mal porque trabalha-se mal", a opção pela segunda alternativa deve ser clara.
A conclusão final seria que somente quando a população voltasse a confiar na qualidade e na quantidade dos serviços públicos que recebe é que qualquer programa de estabilização, com crescimento, poderia ser bem sucedido.

JOSÉ VALNEY DE BRITO, 50, é administrador de empresas pela Fundação Getúlio Vargas e consultor de empresas. Foi diretor-executivo financeiro do Grupo Pão de Açúcar.

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