São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 1994
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Ciumentos perdem a vergonha na cara

MARCELO COELHO

O ciúme deixa de ser uma paixão condenável para se tornar objeto de orgulho e estimulador do casamento
A figura do maridotirano, que prende amulher a sete chaves,pertence ao passado
A imagem da mulherresignada cede lugarao feminismo queafirma seus impulsos

Assim, 13% é uma proporção relativamente pequena, para os que se confessam "muito ciumentos". Mas uma coisa é ser "muito ciumento", outra é "sentir ciúmes". E, nesse ponto, o tema se complica.
Se seu parceiro sair à noite com alguém do sexo oposto, pergunta a pesquisa, você sente ciúme? Ciumentos ou não, 79% dos entrevistados dizem que sim.
O que leva, afinal, a porcentagem tão expressiva de resposta "ciumentas"? Desconfio, como disse acima, de que as pessoas se orgulham de sentir ciúmes de vez em quando. Caso não se importassem com o fato de o parceiro sair com gente do sexo oposto, passariam por idiotas. Então, mesmo sem serem ciumentas, dizem que sentem ciúmes, ou querem sentir ciúmes, ou sentem ciúmes de fato.
Não importa o quanto de confiança tenham no parceiro. Ou melhor: 21% dos entrevistados, os que dizem não ter ciúmes nessa situação, são os que provavelmente têm confiança. Os outros 79%, que sentem ciúmes com saídas acompanhadas à noite do parceiro, temem ou desconfiam de que algo poderá acontecer.
A ilusão talvez seja a de opor "confiança" a "ciúmes". Se tem confiança, não tem ciúme, se tem ciúme, não confia. O raciocínio é provavelmente falso, em uma época em que, no fundo, sentir ciúmes não tem nada de condenável.
A figura do "marido ciumento", tirano que prende a mulher a sete chaves, pertence sem dúvida ao passado. O aspecto mais condenável do ciúme desapareceu com os progressos da civilização.
Ficou bonito ter ciúme. É algo de que as mulheres, em especial, se orgulham. Veja-se a pesquisa: "muito ciumentas" são 18% das mulheres, contra 9% dos homens.
Diante do passado mítico e atroz do "marido ciumento", o ciúme tornou-se uma qualidade, e não um defeito, especificamente feminina. É óbvio. A imagem da mulher resignada, que aceita as aventuras do marido enquanto deixa a comidinha dele no forno, cede lugar ao feminismo afirmador de seus direitos, de suas paixões, de seus impulsos irracionais. Natural, então, que as mulheres se assumam como ciumentas.
Tanto o ciúme se tornou propriedade feminina, que apareceu um ato falho no texto da Folha deste domingo. Leia-se com atenção. A pergunta do Datafolha era "o que você já fez movido por ciúmes?" Quarenta por cento responderam que sim à seguinte formulação: "Ficou brava por ele (a) estar olhando para outra?" O notável, neste exemplo, é que se usou o adjetivo no feminino: "brava", em vez "bravo (a)", como exigiria a indeterminação da estatística.
Do mesmo modo, ficou "outra" em vez de "outro (a)". O esforço de fazer jogo limpo, falando por exemplo em "parceiro saindo com alguém do sexo oposto", terminologia que se adapta tanto no caso de o entrevistado ser homem ou mulher, perdeu-se. "Brava" fica a mulher quando o sujeito olha para "outra".
Falei do orgulho que há em sentir ciúme, e de como isso passou dos homens para as mulheres. Talvez seja outra coisa. Não é que as pessoas tenham orgulho ao sentir ciúmes. Talvez só as pessoas orgulhosas é que tenham ciúme. E as mulheres, por certo, ficaram mais orgulhosas, menos submissas, ultimamente.
Mas nem tanto. A pesquisa mostra um resquício machista importante e especialmente injusto. Só 13% dos entrevistados concordam com a idéia de que a mulher pode ter aventuras, mas o importante é que ela volte para casa. Já 31%, bem mais, concordam com a frase: "O homem pode até ter outras, mas o importante é que ele volte".
Sinal patético de que a importância do homem, mesmo traidor, em casa, é maior do que a da adúltera –ou seja, que a função masculina de prover o sustento da família ainda permanece e absolve o farrista de seus deslizes morais.
Vive-se, assim, uma ambiguidade. Mulheres mais ciumentas, homens mais desculpados. Mais brigas e reconciliações, portanto, do que a infelicidade crônica e paciente do casamento antigo.
Minha desconfiança é a de que o ciúme tornou-se mais "interessante" do que era, à medida que apimenta o matrimônio. Coisa normal, hoje em dia, é a mulher falar sobre símbolos sexuais masculinos (prefere Harrison Ford a Tom Cruise, suspira com Andy Garcia), enquanto o marido, calmamente, arrisca-se a algum comentário que corresponda ao seu papel de panacão. Ou ainda, ele pode fazer piadas, depreciar seus supostos concorrentes em Hollywood. Brinca de ser ciumento.
Na verdade, o que o ciúme procura promover é o interesse antigo do primeiro encontro, o suspense que houve na fase da conquista. "Será que ela gosta de mim?", perguntam-se, separados por um intervalo de anos, o conquistador jovem e o marido desconfiado. "Será que ele vai ficar comigo?", perguntam-se a moça arredia e a mulher estabelecida.
Essa busca do tempo perdido não deixa de ter conotações psicanalíticas. Num livro pessimista sobre o casamento, "O Laço Conjugal", feito pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Artes e Ofícios, 1994), Charles Melman sustenta que a mulher é frequentemente ciumenta, uma vez que sempre rivaliza com a mãe do seu marido.
Diz, também, que "a fisiologia do desejo é primeiramente de sempre desejar outra coisa". De modo que, num casamento estável, fundado nas esperanças de "viver feliz para sempre" com o objeto amado, "esse objeto se torna persecutório". Cada um faz "do parceiro o portador das próprias dificuldades".
Mas não há grande originalidade em falar mal do casamento. Antes e depois de Freud, os homens se dedicaram com muito espírito a vingar-se da instituição. O interessante é notar que atualmente a imagem do casamento associou-se à idéia de felicidade (tema a que se dedicam alguns dos autores que contribuem em "O Laço Conjugal", com destaque para o psicanalista Contardo Calligaris) e que o ciúme virou qualidade, e não defeito.
O ensaísta francês Alain escreve sobre o ciúme de forma simpática. O amor se encarrega de julgar que a pessoa amada é perfeita. Pensamos então que o que a diminui e degrada é algo de externo e estrangeiro. Assim é que o ciumento fala mal e escarnece do sujeito que supostamente seduz sua mulher, enquanto engrandece e valoriza a pessoa amada. "O ciúme é generoso", diz Alain, "em compensação, entrega-se a jogos de imaginação totalmente irreais".

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