São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 1994
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Quadros exaltam passadismo e submissão

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DO ENVIADO ESPECIAL A VIENA

Quando pensou na mostra "Arte e Ditadura", no início de 1992, o curador Jan Tabor já havia realizado a dissertação de mestrado e a tese de doutoramento sobre a relação entre o nacional-socialismo e o stalinismo na produção cultural.
"Foi um trabalho de pesquisa difícil, que me levou a buscar material em fontes diversas", conta. "Havia obras confiscadas na Segunda Guerra pelos americanos, quadros expostos no Museu Judaico de Praga e em museus russos e retratos em poder de particulares."
As obras foram selecionadas entre 242 coleções particulares e públicas. Os museus das cidades pequenas estão cheios de obras nazistas e fascistas, como a Academia Olímpica e a Pinacoteca de Vicenza, no norte da Itália, ou a Galeria Regional de Klagenfurt, no sul da Áustria.
O exercício fascinante de descobrir, por exemplo, 17 retratos a óleo gigantescos do chanceler nazista Adolf Hitler (1889-1945) em vários locais encheu Tabor de dúvidas. "Me perguntei: a quem pode interessar essa arte ruim e essa arquitetura pior ainda?"
Mas é hora, pensa o curador, de trazer à tona fragmentos de uma época que até pouco tempo eram insuportáveis aos sentidos.
"A minha geração, que viveu o pós-guerra, virou as costas para o problema. Mas chegou o momento de pensarmos com isenção sobre o que nossos pais e avós viveram. De alguma forma, esta é uma exibição autobiográfica porque retoma algumas imagens que marcaram a minha infância."
Arte sem aura
O fato é que nem tudo em "Arte e Ditadura" é ruim. Há coisas belas e carregadas daquele "pathos"' dos cacos detonados. Esses objetos exibem, sim, um aspecto monstruoso inerente à mentalidade que os animou.
Os regimes em questão assassinaram e expulsaram artistas e intelectuais em nome de uma pureza racial e ideológica que se encarnava em certas características.
O realismo se associou à alegoria para justificar a submissão. Os modelos tinham que se integrar na ordem do sistema. As insígnias se tornaram mais importante do que os fatos. O monumento se sobrepôs ao ser humano. Fascistas, nazistas e comunistas praticaram uma arte avessa ao humano.
A originalidade de Tabor foi de tentar despir as obras da carga ideológica para fornecer-lhes o que nunca tiveram: a aura atemporal de obras artísticas.
Se têm ou não esse status, cabe ao visitante julgar. Antes mesmo de entrar, ele se depara com um daqueles menires soviéticos com bustos de Lênin e Stalin. O instalado diante do museu vienense está pela metade, rodeado de flores amarelas. Tem o aspecto de uma ruína inofensiva.
Os restos se multiplicam dentro do museu. Troféus, panfletos, cartazes, esculturas, maquetes e quadros fazem dessa exposição a mais completa já realizada no gênero.
É como estar numa casa do terror, mas de um terror cujos resultados já são conhecidos. Fica a moral. Nem sempre a arte salva. Às vezes ela tem pernas curtas.
Futurismo e militares
Os artistas empregados pelos regimes ditatoriais sobreviveram à guerra. Como castigo, granjearam o esquecimento.
As melhores telas pertencem aos pintores fascistas. A boa fatura e a busca do movimento compensam a temática pífia e militarista.
Em "Retrato do Duce" (1933), o pintor Gerardo Dottori (1884-1977) utiliza as lições do primeiro futurismo para elaborar um perfil cubista e berrante do chefe de governo da Itália Benito Mussolini (1883-1945).
Outro artista, Ottone Rosai (1895-1957), congela o início do movimento na tela "O Apelo" (1933), em que um trabalhador aparece em primeiro plano, fazendo o gesto característico do fascismo e conclamando a plebe a participar de uma arruaça.
Os fascistas se beneficiaram da relativa liberalidade de Mussolini. Não eram obrigados a criar paraísos raciais como seus colegas alemães e austríacos.
Os austríacos produziram mostruários de valquírias felizes e atléticas. É o caso de Ivo Saliger, hoje com cem anos de idade, que pintou nos anos 40 nus e alegorias de felicidade. Em "Louvor", Saliger parodia e esvazia a tela "Déjeuner sur l'Herbe", de Manet. O nu de Saliger apazigua em vez de agredir. Uma mulher loira sorri com segurança de dar susto.
Os alemães se inclinavam ao retrato, sobretudo de seus líderes, e aos projetos de arquitetura faraônica. Os retratos de Hitler e amigos são hieráticos e quase sem cor. Estão expostas também as maquetes do arquiteto Paulo Ludwig Troos (1878-1934). Ele criou entre 1930 e 1934 os principais edifícios e monumentos nazistas, dentro de um estilo neoclássico.
Stalin heróico
A seção soviética é a mais cômica. Quadros em grandes dimensões exaltam o heroísmo dos ditadores soviéticos Josef Stalin (1879-1953) e Lênin (1870-1924) e a alegria proletária.
Os retratos de Lênin evoluem em alegoria ao passo que recuam em realidade. Os primeiros exemplares mostram o chefe soviético em poses burguesas.
Exemplo: "Lênin diante do Kremlin" (1924), de Isaak Brodski (1884-1939), está de boné e mãos nos bolsos. Depois de sua morte, ele já surge monumental, a guiar a massa com dedo em riste, como em "Lênin com Dirigentes do Congresso da Juventude Comunista em 1920", pintado em 1949 por Piotr Belussov.
"Mulher no Trator" (1943), de um certo Petrov, quer provar com tintas impressionistas que a mulher soviética pode dominar a máquina e ser alegre.
Uma tela de Fiodor Schurpin, datada de 1949, leva o título "A Manhã da Nossa Pátria". Mostra Stalin com olhar sonhador com uma estepe cultivada ao fundo. A obra é um prodígio da bajulação. Elogia simultaneamente o chefe, a coletivização do campo e, de quebra, o conformismo estético.
Tanto os artistas nazistas como os stalinistas rezaram pelo breviário impressionista. Os fascistas eram mais criativos e inventaram o futurismo. Mas as três tendências –se podem ser chamadas assim– deixaram como legado a aniquilação da concorrência.

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