São Paulo, sexta-feira, 17 de junho de 1994
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O desalinhamento dos preços e o real

ABILIO DINIZ

A criação da URV como mecanismo de transição para a estabilidade de preços foi uma saída engenhosa e um dos aspectos mais positivos do atual plano de estabilização econômica.
A conversão de preços para URV permite a sincronização do reajuste de preços, com reajuste diário em cruzeiros reais; contorna o problema da "tablita" e, com a extinção do cruzeiro real no dia 1º de julho, deverá trazer uma queda abrupta da inflação para níveis próximos a zero.
Entretanto, a conversão para URV no comércio varejista está sendo muito mais complicada do que na indústria, particularmente em segmentos como o de supermercados, que operam com milhares de produtos.
Neste processo de urvização acabaram surgindo desequilíbrios enormes nos preços relativos, frequentemente numa mesma empresa, como tem sido amplamente mostrado pelas pesquisas de preços.
Distorções para cima e para baixo nos preços de um número significativo de produtos persistem e precisam ser reequilibradas para evitar que isso venha a ocorrer depois da criação da nova moeda, com efeitos negativos sobre o Plano Real.
Administrar a conversão de preços de milhares de produtos não é uma tarefa trivial, principalmente quando as compras passaram a ser feitas em URV, enquanto as vendas tinham e têm de ser feitas obrigatoriamente em cruzeiros reais.
Os custos passaram a ser corrigidos diariamente pela URV, enquanto as práticas de reajuste periódico dos preços nas prateleiras tiveram que ser mantidas.
Além do descompasso de comprar em URV e vender em cruzeiros reais, com a conversão de preços industriais para URV, os custos financeiros tinham de ser retirados e as faturas passaram a expressar preços à vista, em cruzeiros reais, e as contas a pagar, em URV.
Nessa mudança, desaparece a informação fundamental para o cálculo do preço de vendas pelo varejista, que era o preço da nota fiscal, pois esse sofre uma deflação e passa a ser corrigido diariamente pela URV, até a data do pagamento.
Recompor essa informação básica é um processo complexo, pois a margem real de lucro é composta por três partes básicas: margem sobre preço de custo a prazo (que pode ser negativa), ganhos oriundos da aplicação financeira das receitas de vendas (que dependem da rotatividade do produto) e a incidência/prazo de recolhimento de impostos.
Além disso, num contexto em que a moeda se desvaloriza cerca de 1,8% por dia útil, todos os valores têm de ser atualizados para uma data única, a data de pagamento da mercadoria. Muitas empresas no setor não dispõem dessas informações.
Vejamos um exemplo bastante simples para ilustrar o problema. Imagine uma mercadoria que custa CR$ 1.450,00 para pagamento em 30 dias e que embute um custo financeiro de 45%. Esta mercadoria é vendida pelo varejista no 15º dia após a sua entrada e, aplicando-se a receita de vendas no mercado financeiro por dez dias úteis, obtém-se neste período um ganho de 20%.
Antes da entrada da URV, o varejista acrescentava uma margem comercial, que aqui supomos que seja zero, sobre o preço de faturamento e, assim, vendia a mercadoria por CR$ 1.450,00. Aplicando a receita de vendas por 10 dias úteis, obtinha no final de 30 dias uma receita global de CR$ 1.740,00 e uma receita líquida de CR$ 290,00 (CR$ 1.740,00 - CR$ 1.450,00), que representa uma margem real operacional de 16,7% da receita bruta para cobrir todos os seus custos operacionais. Subtraídos esses custos, a margem líquida de lucro do setor tem sido historicamente de 1% a 2%.
Com a introdução da URV, o fornecedor passou a emitir a nota fiscal pelo preço a vista de CR$ 1.000,00. Suponhamos que a URV seja igual a CR$ 2.000,00 no dia do faturamento. Assim, o varejista tem conta a pagar de 0,50 URV. Mas ele não sabe de antemão qual o valor em cruzeiros reais que terá de pagar ao fornecedor no dia do vencimento. Se a variação da URV for prevista corretamente e for de 45%, em 30 dias, o varejista terá de pagar CR$ 1.450,00 no vencimento.
Neste caso, se a margem comercial sobre o preço da nota fiscal aumentar de zero para 45%, o preço de venda ao consumidor final continuaria sendo os mesmos CR$ 1.450,00 e o ganho financeiro seria o mesmo, pois aplicaria a partir do 15º dia o mesmo valor. A receita bruta de CR$ 1.740,00 (igual a 0,60 URV) não se alteraria e a margem operacional real (16,7%) continuaria a mesma. A introdução da URV seria neutra.
Na prática, pressionado pela competição e confundidos pela complexidade dos cálculos envolvidos, muitos varejistas fixaram para alguns produtos margens menores do que as necessárias para manter a lucratividade média e compensaram essa perda elevando de forma desordenada outros preços. É por isso que as pesquisas mostram desalinhamentos de preços jamais observados no passado.
Outro equívoco que merece esclarecimento é de que os supermercados estariam aumentando os preços para compensar a redução de ganho financeiro.
Mostramos acima que a introdução da URV não implica queda na margem financeira desde que o preço de venda seja fixado corretamente –com uma margem comercial maior sobre uma base menor deflacionada com a retirada do custo financeiro–, de forma que os preços ao consumidor e a margem operacional permanecem inalterados.
Com a emissão do real e a queda na inflação, os ganhos e os custos financeiros sofrerão queda. A margem comercial sobre o preço de custo terá de aumentar para compensar o declínio ganhos financeiros, mas a margem operacional real não deverá sofrer mudança. Não alterando consequentemente o preço final.
O setor varejista conhece melhor do que ninguém os efeitos negativos do contínuo reajuste de preços. É o maior interessado na queda da inflação, através do sucesso do Plano Real.

ABILIO DOS SANTOS DINIZ, 56, empresário, é vice-presidente-executivo do Grupo Pão de Açúcar.

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