São Paulo, sábado, 18 de junho de 1994
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Conjunção imortal

JOSUÉ MACHADO

Na biografia de Vinicius, "O Poeta da Paixão", José Castello conta que Aurélio Buarque de Holanda Ferreira quase brigou com o amigo poeta; acusou-o de ter estragado seu dicionário com o uso livre e fortíssimo da conjunção posto que como causal, eternizando-a assim, torta, no terceto final de seu "Soneto de Fidelidade", de 1939:
"Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."
O problema, lamentado por Aurélio, é que a conjunção posto que nasceu, cresceu e sempre foi utilizada como conjunção subordinativa concessiva, igual a embora, ainda que, apesar de. Desde a divulgação desses versos, no entanto, posto que tem sido usada como porque, conjunção subordinativa causal, que não é. Um exemplo no artigo de um analista irritado com o último plano econômico do governo: "...e o plano –posto que é chinfrim– não previu nenhuma medida..." (O grifo é nosso, como diria o Lula se fosse o Fernandenrique). É óbvio aí que posto que equivale a porque.
É verdade que o Vinicius foi muito folgado no uso da conjunção, procurando encontrar a métrica, o ritmo e a melodia que mais lhe agradassem. Afinal, o poeta pode o que o articulista de jornal não pode. Quanto a ter estragado o dicionário, o Aurélio poderia ter recolhido o exagero e escolhido o caminho da brincadeira.
Primeiro, poderia ter dito a Vinicius que ele não deveria ter escrito o verso fundamental do soneto ("mas que seja infinito enquanto dure") tão parecido com o verso de Henri de Régnier (1864-1936): "L'amour est éternel tant qu'il dure", como lembrou Carlos Heitor Cony nesta Folha. Seriam versos do mesmo forno? Reencarnação não era, porque Vinicius nasceu em 1913, e em 1938 foi estudar literatura inglesa em Oxford. Em 1939 saiu de lá correndo por causa da guerra. Escreveu o soneto em outubro desse ano em Estoril, Portugal.
Em segundo lugar, Aurélio poderia ter sugerido a Vinicius uma variação gramaticalmente correta dos três últimos versos, sem prejuízo da métrica, trocando de lugar as duas palavras fundamentais equivalentes –infinito e imortal:
"Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja infinito porque é chama
Mas que seja imortal enquanto dure."
Não se arriscou a levar uma garrafada cheia de uísque na cabeça. Graçolas à parte, artigos de jornal não precisam ter métrica nem são contemplados com licença poética. Por isso não fica bem mudar neles o sentido das palavras, posto que (ou embora, ou ainda que) se tenham colado aos ouvidos e às esquinas da alma com a beleza da poesia.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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