São Paulo, sábado, 18 de junho de 1994
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Ricupero relega Amazônia à viuvez eterna

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Em plena campanha eleitoral no Nordeste, Fernando Henrique Cardoso comeu outro dia uma buchada de bode. O dicionário Aurélio define buchada assim: "Panelada das vísceras e intestinos do carneiro (ou bode) cuidadosamente preparados". Digo aqui ao meu querido e finado amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira que "cuidadosamente preparados" ocupa no verbete um espaço dispensável.
Na culinária, senão nas coisas em geral, tudo deve ser preparado com cuidado. Alagoano mas conhecedor profundo do Brasil não-nordestino, mestre Aurélio estaria tomando, aqui sim, seus cuidados com o errôneo alarme que poderia criar no Centro-sul do país uma descrição demasiado austera e concisa da buchada. No caso, o advérbio emoliente e o verbo caseiro servem de tranquilizador tempero.
O escritor, filólogo e gastrônomo Antonio Houaiss, no seu "Magia da Cozinha Brasileira" vai às minúcias da buchada, contando como no bucho, ou estômago do carneiro ou bode, metem-se as vísceras que do animal foram extraídas, "mais a cabeça do dito e o sangue do dito, coalhado e aferventado à parte".
O final da receita reza: "Entrouxam-se no bucho os miúdos cortados e temperados, mais o sangue e a cabeça, costurando bem a abertura do bucho. Num panelão, com muita água, ferver o bucho."
Só fiquei meio inquieto, ao ler na Folha a descrição da cena de Fernando Henrique comendo bode ao jantar porque mestre-cuca Houaiss adverte, depois da longa descrição da buchada, da qual só citei o essencial:
"É prato único –pudera! Corre que se deve dormitar depois, mas só, sob pena de risco de morte. Delicioso, não se pense que seja anafrodisíaco –o que é mesmo, em verdade, é que é pesado. Há disputa pelo privilégio de chupar os olhinhos" do carneiro ou bode.
Aos jornalistas de sua comitiva, que miravam a buchada com preocupação, Fernando Henrique disse: "É uma delícia. Vocês estão assim porque nunca moraram em Paris, onde esse é um prato sofisticado".
Eu me lembro de ter comido uma buchada de bode, que achei também deliciosa, há muitos e muitos anos, na casa do pintor e desenhista Abelardo Rodrigues, em Olinda.
Quanto a Paris, fiquei surpreendido. Até que consigo imaginar uma alentada refeição em que a buchada fosse acompanhada de um Beaujolais, que alegra muito bem a feijoada francesa, o "cassoulet". Mas morei algum tempo em Paris e de buchada, lá, não me lembro. Talvez me escapou, no Quartier Latin, algum bistrô nordestino.
Bodes expiatórios
Mas não era absolutamente minha intenção abordar assuntos culinários. Eu pretendia escrever sobre bodes expiatórios e não sobre buchada de bode.
Meu tema era a relação de Euclides da Cunha com a Amazônia, relação que se aprende em sua totalidade no livro fundamental de Leandro Tocantins intitulado "Um Paraíso Perdido", segunda edição, José Olympio Editora. Como a reportagem sobre o vigoroso jantar de FHC vinha de Canudos, e Canudos é Euclides puro, meu tema inicial foi parar no fogão.
O rico material euclidiano reunido por Leandro Tocantins em seu livro pode ser em grande parte encontrado nos dois volumes Aguilar da obra completa de Euclides; em "O Rio Purus", editado pela Sudam, e nas cartas de Euclides datadas de Manaus e publicadas em "Euclides da Cunha e Seus Amigos", de Francismo Venâncio Filho.
O grande valor e interesse da obra de Leandro Tocantins foi enfeixar num único tomo todo aquele Euclides que se apaixonou pela Amazônia.
Até hoje quase só se tem pensado no Euclides da Cunha "nordestino", que conheceu Canudos primeiro como repórter e depois como escritor e visionário. O Euclides, em suma, de "Os Sertões". É claro que sem "Os Sertões" Antonio Conselheiro, caso seu nome tivesse sobrevivido, seria mencionado em algum capítulo breve da história político-militar do Brasil nos primeiros tempos da República.
Mas graças à epopéia de Euclides, aquele que seria apenas um "fanático" se transformou numa espécie de bode expiatório eterno. A denúncia de Euclides, válida até hoje, era de que o Brasil litorâneo –voltado para a Europa e que achava que o 15 de novembro o tornaria moderno e civilizado– considerava os sem-terra do sertão uma espécie de sobra da escravidão, restos de senzala.
Aquela gente tinha que trabalhar e trabalhar sem dar um pio e acabar, morrer, poupar-nos a vista de sua miséria e sua feiúra.
Os escritores de veia bíblica, capazes de indignação profética diante da injustiça, imortalizam os bodes expiatórios que adotam. Ainda que o caso Dreyfus tivesse tido um dia uma solução burocrática correta, absolvendo Alfred Dreyfus, quem se lembraria ainda desse nome se não fosse o indignado "J'Aacouse", de Émile Zola?
Lembremos, a título de curiosidade, que o caso Dreyfus e a campanha de Canudos foram praticamente contemporâneos. Euclides com seu livro e Zola com sua carta-panfleto ferveram ao mesmo tempo.
Obra-prima
"Um Paraíso Perdido", de Leandro Tocantins, destaca como epígrafe um trecho da carta a Coelho Neto na qual Euclides revela que pretende escrever um livro chamado "Um Paraíso Perdido", em que procurarei "vingar a Hiléia maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século 17. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-se apenas umas longas barbas, emaranhadas e trágicas."
Assim, depois de ter denunciado as brutalidades das gentes adoidadas em Canudos, afiava a pena para repetir façanha semelhante em relação à Amazônia. Infelizmente uma história triste e banal de adultério levou-o embora deste mundo. Denunciado o Brasil das secas, seria denunciado o Brasil encharcado.
Euclides já tinha um fio condutor: o trabalho do braço nordestino. Chegando ao Acre escreveu: "Os cearenses, os paraibanos, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos. Estão amansando o deserto."
Como vemos, a verdadeira viúva do Euclides da Cunha assassinado foi a Amazônia. Que ficou sozinha. Nunca mais ninguém cuidou dela com amor. Há pouco tempo surgiu alguma esperança. Foi quando apareceu, à frente do Ministério para ele criado do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, um homem que parecia talhado para fazer cumprir o que Euclides desejava.
Não diríamos que o embaixador Rubens Ricupero tenha exatamente longas barbas emaranhadas e trágicas. Ou tratou de escanhoá-las. O tipo ascético ficou e em janeiro deste ano, quando ministro da Amazônia, deu conta do que fazia pela imprensa, em artigo assinado:
"A vocação da Amazônia não é ser `o primo pobre' do Brasil. O Brasil tem na Amazônia um instrumento, um formidável trunfo para o seu desenvolvimento sustentável integral. Nada seremos se relegarmos a região ao esquecimento ou aos erros do passado. Existe vontade política. Cabe agora, nos próximos meses, convertê-la em impulso para iniciar..."
Não deu para iniciar nada. Neste país, que Osvaldo Aranha dizia que era "um deserto de homens e de idéias", quando aparece um homem, e sobretudo se esse homem tem uma idéia, as forças ocultas de Jânio Quadros tratam logo de emasculá-lo e de lhe tirar a idéia da cabeça.
Antes que Fernando Henrique pudesse concretizar seu Plano Real, puseram-no na estrada e na buchada de bode. Antes que Rubens Ricupero consolidasse seu plano amazônico puseram-no à cabeceira do mofino Real, e, para que não haja nenhuma dúvida quanto à sua disponibilidade amazônica, fica estabelecido que em 1995 ele será o representante do Brasil no Gatt, no exterior, bem longe daqui.
Viúva de Euclides, a Amazônia para sempre viúva será.

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