São Paulo, sábado, 18 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Você Decide' dá voz à misoginia nacional

HÉLIO GUIMARÃES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Desta vez, o "Você Decide" até que pegou "leve" para entrar no ritmo da Copa. No programa exibido anteontem, nem se colocava em questão vender a mãe, matar ou roubar. Rolaram "só" manifestações de misoginia explícita, ao vivo e em cores.
O dilema era: assistir aos jogos da Copa nos EUA e colocar uma mulher para escanteio ou renunciar à Copa em favor do casamento. Mulher e casamento perderam feio: de 18.402 para 57.794 votos a favor da Copa.
Um cobrador de ônibus, "pé-rapado" como frisou Raul Cortez, compra um bilhete premiado que lhe dá "passagem aérea em classe executiva, hospedagem, estadia e ingresso para ver todos os jogos da Copa".
Por outro lado, sua noiva, com quem ele nunca se casava por falta de dinheiro, descobre em letras miudinhas no pé do bilhete que ele poderia ser vendido e render dinheiro para o casamento.
O falso dilema lembra o célebre "casar ou comprar uma bicicleta". Falso também porque o programa, como sempre, conduzia o telespectador para dar no que deu. Até o jingle que a Globo fez para a Copa foi utilizado como trilha sonora para dar mais urgência ao sonho de consumo impossível de Juca, o pé-rapado interpretado por Eri Johnson.
Marketing pouco é bobagem. E a Globo entende isso como ninguém. Usou o programa para esquentar o assunto que vai dominar sua programação no próximo mês. Fez marketing ufanista da "seleção canarinho" e da paixão brasileira pelo futebol, desencavando também o jingle da Copa de 70 e do regime militar, o dos 90 milhões em ação.
Raul Cortez, o apresentador, aproveitou para fazer marketing múltiplo. O do seu próximo trabalho, em "Uma Mulher Vestida de Sol", adaptado da obra de Ariano Suassuna; da própria Globo, que exibirá o especial; de Luiz Fernando Carvalho, que dirige o especial. Aproveitou também para convidar Virgínia Nowicki, na praça da República recolhendo depoimentos de populares, para jantar.
Nowicki aceitou o convite (será que ela poderia decidir pelo não?), às voltas com seu papel de garota-propaganda do telão de alta-definição instalado na praça, que transmitirá "para o povo" os jogos do Mundial. Pela Globo, é claro. "A imagem é de verdade, fica muito nítida", insistia Nowicki diante de 15 mil pessoas.
Os depoimentos populares deram o toque mundo-cão à noite, em que a misoginia rolou solta (leia depoimentos ao lado). Nowicki teve até que ouvir de um senhor: "eu ia para Copa, que só tem de quatro em quatro anos, e na volta pegava outra muié, tem muita muié bonita por aí". Programa "democrático" tem dessas coisas.
O final do programa, que o público tem a ilusão de decidir, fez coro à misoginia geral. No aeroporto do Galeão, com a bandeira brasileira ao fundo, a câmera mostrava o rosto de Neuzinha sofrendo o casamento desfeito pela Copa, enquanto uma porta automática se fechava à sua frente. Do lado de dentro, Juca comemorava a realização do seu sonho, ignorando a presença da "mulher tinhosa" (palavras do personagem), abandonada no aeroporto.

Hoje, a coluna de JOSÉ SIMÃO está publicada à pág. 4-7, no caderno "Copa 94"

Texto Anterior: Fetiche, marketing e mídia
Próximo Texto: FRASES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.