São Paulo, sábado, 18 de junho de 1994
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A história do 'Carioca' que nunca foi contada

WALTER SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antes de falar de Chico Buarque de Hollanda, quero falar de um tal de "Carioca", que o meu assistente na época e grande amigo, Manoel Barenbein indicou: "... você precisa ouvir o `Carioca', que estuda na FAU e frequenta o `Sambafo', perto do Mackenzie (era um barzinho meio do sujinho). O cara é demais. Muito engraçado e tem umas músicas que todos cantam, ele é ótimo..."
"Fala pra ele aparecer que a gente ouve", respondi.
Olha que não era fácil. Eu ouvia um bando de gente por dia, que queria participar dos shows do Teatro Paramount, que eu produzia e dirigia para os estudantes das mais variadas faculdades.
Num dia daqueles, eis que me aparece a peça. Tímido mesmo, por isso, talvez, tanto cigarro e tanta bebida. Pedi que mostrasse suas músicas e ele, apavorado, disse que iria buscar o violão no "Frederico". Falei comigo mesmo: "... esse não volta mais; até chegar na casa desse tal de Frederico, o ensaio já acabou..."
"Onde mora esse `Frederico'? Você voltou tão rápido." "Nada. É o meu carro."
"Frederico" era um Aero-Willys 61, bordô, que Chico usava para ir à faculdade e dar suas bandas por aí, mas, era de Dona Maria Amélia, sua mãe. Um dia se escreverá uma história só sobre o "Frederico".
"Então vamos lá, menino. Toca pra nós umas coisas aí", eu disse.
E Chico começou o desfile: "Marcha Para um Dia de Sol", que eu rebatizei para "João 23", mas ele não gostou, e fez muito bem; "Malandro Quando Morre", (Malandro quando morre vira samba/ Mulher vira uma flor no céu/ cai no chão um corpo maltrapilho/ Velho chorando/ Malandro do morro era seu filho); "Pedro Pedreiro" e muitas outras.
Vivia-se a moda da bossa nova, onde melodia, harmonia, poesia e ritmo e domínio do instrumento e da voz, eram para ouvidos de fino trato. Só coisas para gente muito exigente. Eu era um deles e não me conformava em ouvir melodias nada sofisticadas, parecidas com as que ouvi na infância, e aquela inabilidade motora para tocar violão, segurando o bordão com o dedão, e sem o balanço da época, além daquela voz quase nenhuma.
Um moço de 19 anos lembrando um compositor antigo. Mas, que letras, que rimas, que cultura gramatical e que conhecimentos históricos tinha aquele quase adolescente, que me empolgava, embriagava e me embargava e obrigava a aplaudi-lo, mesmo sem nada ter com a bossa nova.
Parecia ter recém-saído de um lugar sagrado, tipo mosteiro, seminário, santuário, sei lá. E tinha; afinal, o que era o "Sambafo" senão tudo isso e muito mais? E seus defeitos vocais e musicais jamais seriam um estorvo para a sua literatura e versos dourados de poesia.
E já no próximo show, cujo título foi "Mens Sana in Corpore Samba", produzido por mim para os alunos da Escola de Educação Física da USP, figurava lá no cartaz: os amadores de bossa nova: Toquinho - Taiguara - Maria Lucia - Chico Buarque - Ivete - Solano Ribeiro - Sérgio Augusto - Bossa Jazz Trio - Bossatôa - Roberta Faro - e Os Poligonais.
Na segunda parte, Silvinha Telles e o show da boate Zum Zum, Roberto Menescal e seu conjunto (Eumir Deodato, João Palma, Hugo Marotta, Sérgio Barroso Neto e Oscar Castro Neves), produzido por Aloísio de Oliveira.
Era 16 de novembro de 1964, uma segunda-feira, teatro lotado.
Estava lançado para o Brasil, Chico Buarque de Hollanda, de que em produziria depois o seu primeiro disco "Pedro Pedreiro", tendo do outro lado, "Sonho de Um Carnaval", para o selo RGE, cujo dono José Scatena autorizou a prensagem de apenas 500 discos.
Um mês depois milhares eram vendidos e ia para primeiro lugar nas paradas de sucesso. Eu seria mais tarde editor de suas primeiras músicas, "A Banda", inclusive. Como tudo isto aconteceu é uma outra história como esta.
Tristeza apenas, de ele nunca tê-la contado a ninguém.
Parabéns, "Carioca", 50.

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