São Paulo, sábado, 18 de junho de 1994
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Autofagia

É raro, mas existe mesmo no mundo animal. A autofagia, o comportamento suicida e até mesmo o pânico às vezes levam comunidades inteiras à destruição. A corrida desatada de remarcação de preços perto da introdução do real engrossa a lista de patologias coletivas, de comportamentos irracionais movidos pelo medo do desconhecido.
A irracionalidade torna-se ainda mais patente levando-se em conta que há apenas três meses os mercados foram tomados por inquietações análogas. Às vésperas da URV, reagiram da mesma maneira, remarcando preventivamente e fazendo estoques especulativos, apenas para acabar dando com os burros n'água. A remarcação exagerada bateu de frente com o poder aquisitivo estabilizado e os especuladores tiveram de voltar atrás.
Mas agora tudo se passa como se o acontecido há poucas semanas tivesse ocorrido há anos, num lugar longínquo. Na indústria e no comércio há novamente quem aposte numa bolha de consumo com força suficiente para sancionar aumentos preventivos de preços.
No mercado cambial grassa uma atitude igualmente inconsequente. Ignorando o chumbo grosso das reservas de mais de US$ 35 bilhões do BC, tem havido uma demanda firme de dólar no paralelo. É evidente que haverá perdas para quem assim proceder, pois os juros reais andam bastante elevados e não deverão cair nas próximas semanas.
Racionais ou não, esses comportamentos revelam com que profundidade o ceticismo se instalou na sociedade. E é de outro lado inegável que o sucesso da estabilização será menor quanto maior o ceticismo. No caso das remarcações preventivas que se aceleram nessa segunda quinzena de junho, por exemplo, é fato que se trata de aumentos que inevitavelmente contaminarão os índices de julho.
Como já ocorreu em março e abril, o mais provável é que já no final de julho essa ansiedade especulativa terá passado. Suas marcas no imaginário coletivo, entretanto, podem ser mais duradouras. Num ambiente de salários sem correção e inflação residual significativa, o risco maior será, como se sabe, político. E os políticos, candidatos ou não, têm tanto horror à autofagia quanto ao vácuo, a começar pelo presidente da República.

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