São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Dois momentos de um jornal

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

A imprensa tem um papel fundamental nas sociedades modernas e cada vez mais complexas. É o canal por onde transitam idéias, novidades e informações -e quanto mais idéias, novidades e informações ela conseguir veicular, discutir e avaliar, quanto mais conseguir refletir a sociedade em que está mergulhada e revelar o que se passa com ela, melhor será. Grosso modo, o que está na imprensa está no mundo, nessas sociedades.
Por essa razão, é importante que a Folha tenha aberto espaço em sua edição de quinta-feira –um bom espaço, diga-se– para que o médico Aníbal Faundes contasse, num ato de coragem, que o Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, dirigido por ele na cidade de Campinas (SP), faz abortos quando constata que o feto não tem condições de sobrevivência. São abortos ilegais, que o médico chama de éticos. Uma espécie de eutanásia prévia de alguém sem chances de viver.
O Caism é ligado à Unicamp, uma das mais respeitadas universidades brasileiras. Fica numa grande cidade do Estado mais rico do país. As mulheres atendidas ali, de graça, têm à sua disposição tratamentos que, no Brasil, frequentemente só alcançam quem tem dinheiro. É, enfim, uma exceção sob todos os ângulos. A Folha não explicou ao leitor, mas aparentemente tropeçou nas declarações de Faundes quando investigava a venda no mercado paralelo de Campinas de um remédio, o Cytotec, usado como abortivo.
Com a entrevista do médico em mãos, e sua autorização (publicada também pelo jornal) para reproduzir o que ele havia dito, a Folha abriu uma página inteira da edição de quinta-feira para o assunto. Uma boa página: tinha informações sobre os casos de má-formação na população mundial (4% dos nascimentos), um perfil do Caism (um dos maiores centros de atendimento à mulher no país; 3 mil partos no ano passado), a legislação brasileira sobre aborto (permitido apenas em casos de estupro ou de risco de vida para a mãe) comparada com a de 14 outros países e os efeitos do Cytotec. Com todos os problemas que conservava (a declaração mais importante do médico, a de que o Caism faz abortos, estava no finalzinho da entrevista, por exemplo), a Folha fez uma boa reportagem. Mais importante do que isso: não opinou, não tendeu para qualquer um dos lados, não "sensacionalizou" o caso. Foi equilibrada. Como o bom jornal que quer ser, a Folha abriu uma nova frente de discussões nesse território espinhoso em que se fala de aborto no Brasil e, como Faundes, pode ter contribuído decisivamente para a reavaliação das leis que cercam o assunto simplesmente retratando a verdade. Por tudo o que já ouvi dos leitores nestes nove meses como ombudsman, imagino que o jornal que eles querem seja parecido com essa Folha da quinta-feira que passou. Um jornal que, aí sim, "não dá pra não ler".
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Mas se teve sensibilidade jornalística para acertar nesse, a Folha errou –feio– em outro caso. No domingo, o Brasil conquistou um título inédito, o de campeão mundial de basquete feminino, numa partida contra a temida seleção da China. Placar final: inacreditáveis 96 a 87. No mesmo domingo, a seleção de futebol bateu o fraco time de El Salvador no último amistoso antes da Copa. Placar final: um protocolar 4 a 0. No jornal de segunda-feira, a porção superior da Primeira Página (a área nobre do jornal) chegou aos leitores dominada por uma foto de um lance qualquer da partida da seleção de futebol –uma partida sem importância. Para as meninas do basquete, que além do título inédito acabavam de garantir uma vaga na Olimpíada de Atlanta em 96, o espaço que sobrou ficava abaixo da dobra, e era menos da metade daquele ocupado pelos garotões do futebol. Até ontem, 20 leitores protestaram contra essa escolha do jornal. "Um amistoso contra pernas-de-pau não merecia mais do que uma notinha na Primeira Página. Hortência e Paula, que estão deixando a seleção depois de colocar o Brasil na Olimpíada, mereciam a manchete do jornal", resumiu um irado leitor de São Paulo. O tom dos protestos foi quase sempre o mesmo. Depois de Senna, Hortência talvez seja a atleta (na ativa) mais querida e conhecida do país, e fora dele. Mais: um título inédito no basquete feminino é sempre um título inédito. O jornal parece ter demorado para acreditar que as meninas tinham chance (a vitória contra os EUA por 110 a 107, no sábado, que colocou o time pela primeira vez numa final, foi noticiada numa quase invisível notinha na capa do domingo). Enfim, a Folha perdeu duas boas oportunidades: a de valorizar uma notícia importante, e a de atender aqueles (muitos) leitores que acham que esporte é mais do que seleção brasileira de futebol.
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Em compensação, para os leitores que adoram futebol o jornal dá um show: fez os cinco fascículos da História das Copas (o último saiu no domingo passado), o Guia da Copa que circulou na quarta-feira, Tudo sobre a Copa que saiu na quinta, mais o diário Copa 94 que, desde sexta-feira, ganhou diagramação nova, bonita e mais fácil para o leitor. Hoje, dá bandeira e álbum de figurinhas nesta edição. Poucas reclamações, a maior parte delas para apontar pequenos erros, têm sido feitas à ombudsman sobre esses cadernos especiais. No lugar delas, o leitor tem preferido elogios à Folha. Talvez ele não saiba, mas o planejamento que permitiu ao jornal publicar esses suplementos e estar nos EUA com o fôlego atual começou a ser feito há um ano. Planejamento, aliás, tem sido um dos pontos mais fortes da Folha: quando terminar a Copa, a equipe de Esporte certamente já vai começar a pensar em Atlanta-96. Tomara que, dessa vez, preste mais atenção às meninas do basquete. Porque o que pegou o jornal de calças curtas foi exatamente o fato de que não se podia planejar que, tão cedo, o Brasil fosse ser o campeão mundial de basquete feminino.

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