São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994 |
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Reflexões sobre prática do abuso econômico
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
O que está em jogo, ao se falar em "preço justo", é alguma noção de justiça comutativa –a existência de uma proporção ou equivalência entre o valor recebido e o valor pago num ato de troca. A noção de "preço abusivo" denota a ocorrência de uma desproporção significativa entre esses dois valores. O preço pedido não corresponde ao valor da coisa. O grande problema é saber quem e o que determinam o valor do bem ou serviço transacionado. Há casos de injustiça flagrante. O exemplo mais óbvio é a fraude. Você compra um pacote de 500 g de café, paga o preço pedido e descobre que ele continha, digamos, 45 g a menos. O mesmo vale para a inflação. Você trabalha, ganha um salário de CR$ 500 e descobre, na hora de gastar, que o poder de compra do dinheiro recebido já não corresponde ao que lhe foi originalmente pago. Com aquela quantia, você só compra agora o equivalente a CR$ 455. Nesses dois casos, a violação da justiça comutativa decorre de uma mentira –tanto o peso escrito no pacote quanto o valor estampado no dinheiro não correspondem à realidade. Os termos do contrato foram adulterados de forma sorrateira, sem o consentimento de uma das partes. O que era, a princípio, uma troca livre e voluntária, deixou de sê-lo. Alguém levou 45 g do seu café e CR$ 45 do seu salário sem lhe dar nada em troca. Embora o caráter livre e voluntário da troca seja uma exigência fundamental da justiça comutativa, o fato é que o simples desejo de ambas as partes de fazer uma dada transação não garante a sua legitimidade. A transação legítima, é certo, resulta de um encontro de interesses. Mas alguns requisitos adicionais precisam ser preenchidos. Considere, por exemplo, o que se pode chamar de o melhor negócio imobiliário de todos os tempos. Quando os índios norte-americanos aceitaram, de livre e espontânea vontade, vender a Ilha de Manhattan para os holandeses por US$ 24, isso pode ser considerado um caso de abuso econômico? A realização da troca melhorou a situação de ambas as partes, sem piorar a situação de ninguém. Proibí-la –ou mandar a polícia desfazer o negócio à força– significaria apenas piorar a situação de ambos, sem melhorar a de ninguém. Quanto teriam oferecido os portugueses pela ilha? O que haveria de errado, então, com essa transação? Um argumento que permite questionar a legitimidade da compra nesse caso seria uma variante daquele desenvolvido por John Stuart Mill para justificar o paternalismo dos adultos e do Estado com relação às crianças: "Liberdade de contrato, no caso de crianças pequenas, não passa de um outro nome para liberdade de coerção". Embora não fossem crianças, os índios que venderam a ilha pertenciam a uma cultura completamente distinta da nossa e eram incapazes de avaliar o absurdo comercial do que estavam fazendo. Seria justificável, portanto, que houvesse algum tipo de tutela restringindo suas ações no campo econômico e resguardando seus interesses dos abusos praticados por terceiros. Duas outras modalidades de abuso econômico que interferem no processo de formação de preços, mesmo quando a transação é livre e voluntária, são o monopólio e a assimetria de informação. Uma ilustração interessante do uso da informação para o estabelecimento de um monopólio é o exemplo dado por Aristóteles na "Política". Tales de Mileto, o filósofo pré-socrático, vivia na pobreza e era ridicularizado por isso. Um belo dia, resolveu dar o troco. Com base em seus conhecimentos de meteorologia, ele previu uma supersafra de olivas no ano seguinte, reuniu um pequeno capital e começou a arrendar, por um baixo preço, todas as prensas de azeitona disponíveis nas redondezas. "Quando o verão chegou", relata Aristóteles, "e houve uma demanda súbita e simultânea pelo uso das prensas, Tales fez uma grande fortuna alugando-as pelo preço que escolhesse fixar, mostrando assim como é fácil para os filósofos tornarem-se ricos, embora não seja isso o que os ocupe na vida". Aristóteles nunca precisou chegar a esse ponto –tinha Alexandre III para financiá-lo. O problema da assimetria de informação surge com clareza nos casos em que profissionais liberais se servem de seus conhecimentos e habilidades não para atender os clientes, mas para tirar proveito da sua ignorância e credulidade. Um médico inescrupuloso, por exemplo, pode enriquecer às custas de seus pacientes, aproveitando-se da posição de autoridade que ocupa para vender tratamentos ociosos e cirurgias caras. Todas essas categorias de abuso econômico –fraude, coerção, exploração de grupos sociais vulneráveis, assimetria de informação e práticas anticompetitivas– mostram que o Estado pode e deve assumir um papel de relevo na defesa da justiça comutativa. A simples garantia de um padrão de valor estável para as transações representaria uma contribuição inestimável para esse fim. O erro fatal seria imaginar que a autoridade política pode determinar, consultando planilhas de custo e interpelando empresários, o que seja o "preço justo" de alguma coisa ou uma "elevação de preços sem justa causa". Fazer isso não é só estender o princípio (inexequível) da "lei da usura" para todo o sistema econômico, reinventando o pior da filosofia escolástica. É cortar pela raiz qualquer pretensão de tornar a economia brasileira um pouco menos mercantilista e um pouco mais parecida com uma verdadeira economia de mercado. A mistura de oportunismo político e obscurantismo econômico da qual surgiu a nova lei antitruste é a química que tem nos condenado ao pré-capitalismo há séculos. Texto Anterior: Quem segura Itamar? Próximo Texto: Patrimônio mantém queda Índice |
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