São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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Melanie Klein transforma em relato atraente o caso Richard

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dá vontade de ser Richard, o menino inglês de dez anos analisado pela psicanalista Melanie Klein neste "Narrativa da Análise de Uma Criança" (1961), só para ter tão bem revelados os motivos de por que viramos os monstros de complicação que somos quando adultos.
Austríaca radicada na Inglaterra, Melanie Klein (1882-1960) foi uma das pioneiras da psicanálise de crianças. É autora de uma das primeiras obras importantes sobre o assunto: "A Psicanálise de Crianças" (1932). Partindo das observações de Freud sobre sexualidade, desenvolveu a interpretação das psicoses e neuroses narcísicas (chamadas endógenas), paralelamente ao processo de verbalização.
Uma de suas contribuições teóricas para a ciência da psicanálise foi a descoberta de que –ao contrário do que pensavam estudiosos contemporâneos seus– o superego de uma criança é mais perseguidor e severo do que nas outras fases do crescimento, sendo o papel do analista trabalhar para diminuir a resistência do superego, em favor da libertação do ego.
Em 1945, Klein escreveu, baseando-se em grande parte no caso de Richard, o artigo "O Complexo de Édipo à Luz das Ansiedades Arcaicas" (Obras Completas, vol. 2). Somente 15 anos depois, entretanto, resolveu-se a retomar o caso em "Narrativa da Análise de uma Criança".
O livro é o relato diário da análise do garoto. No decorrer dos quatro meses que durou, Klein descreve sessão por sessão, partindo das anotações minuciosas que sempre tomava de seus pacientes crianças. A descrição de cada sessão é seguida de notas em que a psicanalista pondera sobre a técnica que utilizou na época, ora para confirmá-la, ora para apontar falhas.
Os sintomas neuróticos de Richard desenvolveram-se a ponto de o impedirem de frequentar a escola. Ele tinha muito medo de outras crianças, não saía sozinho, era hipocondríaco e depressivo. O advento da guerra, em 1939, aumentou suas ansiedades.
Temia os ataques aéreos e as bombas, mas era, por outro lado, interessado e profundo conhecedor do assunto. Durante o tratamento, Richard produziu uma série de desenhos ilustrando cenas da guerra. "Em muitos sentidos", escreve Melanie Klein, "Richard era uma criança bem-dotada e precoce. (...) Era muito musical (...), e seus dotes artísticos podiam ser observados, por exemplo, no modo como escolhia suas palavras e numa sensibilidade para o dramático que animava sua conversa".
Na página de agradecimento, a psicanalista agradece a extraordinária colaboração e capacidade de "insight" do paciente. Pouco a pouco, através da análise da verbalização e dos desenhos do menino, Klein vai demonstrando que está indo de encontro às necessidades inconscientes dele.
Ela diz: "Richard obteve acentuado alívio pela diminuição da repressão de suas fantasias, e o consequente aumento da capacidade de expressá-las simbolicamente. No brincar de todo dia, em que a criança permanece em grande parte inconsciente do conteúdo de suas fantasias e impulsos incestuosos e agressivos, ela mesmo assim experimenta alívio pelo simples fato de expressá-las simbolicamente; e esse é um dos fatores que tornam o brincar tão importante para o desenvolvimento da criança. Na análise, devemos ter como objetivo o acesso a fantasias e desejos profundamente reprimidos, e ajudar a criança a tornar-se consciente deles. É importante que o analista possa ser capaz de comunicar à criança o significado de suas fantasias".
Para o desenho de Richard que mostrava um avião inglês atacando um submarino alemão, num mar onde outro submarino já aparecia afundado pelo ataque e era observado por um peixe, Melanie Klein escreve, referindo-se a si mesma como "Mrs K.".
"Mrs K. interpretou que o submarino afundado representava o Papai, e em particular o genital do Papai, o avião a parte destrutiva de seu (de Richard) "self", e o peixe representava uma outra parte de seu `self' que se entristecia com a destruição que ele tinha causado. Ele já havia demonstrado repetidas vezes (...) o quanto se sentia culpado pela destruição do genital do Papai."
Este livro de Melanie Klein é interessante não somente por tratar de um caso psicanalítico curioso, como também por revelar um psicanalista em ação. Além de ser uma amostra da técnica kleiniana funcionando, é ainda um testemunho de ética e de honestidade ideológica.
Não bastasse isso, Melanie Klein escreve de um jeito muito bom de ler, fácil, sem complicações de jargão psicanalítico. "Faço questão de utilizar, sempre que possível, as palavras que o próprio paciente usou", diz.
Atraente e esclarecedor para qualquer leigo em psicanálise –em tradução e edição excelentes neste caso–, trata-se de livro indispensável para pais. Afinal, se todos os pais e mães soubessem –ou se conscientizassem– que a coisa mais nociva para uma criança é também eles próprios, os pais, talvez houvesse menos louco no mundo.

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