São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
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O bolero e o pêndulo de Porchat

PLÍNIO JUNQUEIRA SMITH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Porchat é filósofo. Essa palavra, que deve ser usada com muita parcimônia, não precisa ser economizada nesse caso. Seu tema, ao longo dos vários artigos que compõem o livro, é sempre a Verdade; mas suas posições filosóficas variam e não parece equivocado distinguir três fases em seu pensamento.
A primeira consiste na recusa da filosofia e no recolhimento ao silêncio. Desde cedo, Porchat travou conhecimento com os céticos gregos, que, como os sofistas, alimentavam sua desconfiança da racionalidade filosófica; referência igualmente indispensável eram as obras de Gueroult e Goldschmidt. Em seguida, na esteira de Moore, passou a defender um realismo metafísico, baseado em uma promoção filosófica da visão comum do mundo. O ceticismo, então, ganhou o estatuto de adversário principal, pois era visto como uma espécie de vestíbulo para a postura filosófica tradicional, recusada por Porchat. Por fim, Porchat assume o ceticismo, sem, no entanto, deixar de sofisticá-lo à luz da filosofia contemporânea.
A filosofia deve integrar-se no Mundo, ao invés de desqualificá-lo em nome de uma suposta Verdade. Uma oposição básica para Porchat é a oposição entre a Razão teórica ou especulativa, que caracterizou o pensamento ocidental, e a Vida ou Mundo, isto é, tudo o que ocorre em nossa vida prática. Por se reconhecer imerso no mundo e, em particular, no mundo dos homens, Porchat sempre acaba por atribuir importância central à Vida Comum.
Mesmo quando admitia possuir uma verdade teórica, Porchat enfatizava a centralidade da Vida Comum para a filosofia, cuja função era possibilitar e balizar a reflexão filosófica. Suas três fases, a esse respeito, são apenas variações sobre o mesmo tema, como o "Bolero" de Ravel. As noções de homem comum, discurso comum, saber comum e experiência comum emergem com frequência em sua obra.
O reconhecimento da finitude humana perpassa seus escritos e conduz ao gênero literário da autobiografia. "Propor uma filosofia é sempre algo como uma confissão." Porchat retoma aqui uma tradição consagrada na filosofia, que inclui nomes como Santo Agostinho, Montaigne, Descartes, Rousseau e Vico. Mas, diferentemente de Santo Agostinho ou Descartes, por exemplo, em que o "eu" que fala é aquele que alcançou a Verdade e, portanto, fala de um ponto de vista absoluto ou privilegiado, Porchat reconhece-se imerso em uma situação particular e admite que suas opiniões são sempre precárias.
O "eu" de Porchat reconhece-se imerso em uma situação particular e admite que suas opiniões são sempre precárias. O "eu" de Porchat é de carne e osso, é um ser humano. Por isso mesmo, as distinções entre a mente e o corpo ou entre o homem e o filósofo (que compartilharia do divino), comuns na filosofia, são recusadas por Porchat.
Cada artigo é, na medida em que a filosofia se converte em autobiografia, um itinerário pessoal que pode ou não servir de modelo ao leitor. Se não há demonstração em sentido estrito na filosofia, então não há uma argumentação a que o leitor deva necessariamente se submeter, em virtude de uma suposta racionalidade universal. Quando Porchat adota uma posição filosófica, essa é, em última instância, resultado de uma decisão existencial e pragmática; ou então é uma posição a que é levado por certas reflexões, mas que não pode justificar filosoficamente.
Mas o livro é também um único itinerário, o itinerário de Porchat, que sempre tenta situar suas novas reflexões anteriores. Na falta de interlocutores (exceção feita a Bento Prado Jr., que previra aquela oscilação pendular entre ceticismo e dogmatismo, e a Tércio Ferraz), Porchat dialoga consigo mesmo.
A autocrítica é uma constante ao longo do livro, revelando um espírito crítico e aberto. Menos do que uma doutrina, o ceticismo é uma postura crítica de denúncia das ilusões filosóficas, que nos obriga a reconhecer nosso confinamento ao mundo fenomênico (que "aparece" para nós), sem pretender uma transcendência ao "mundo do ser", como nos prometia a filosofia. Assim, todo o itinerário de Porchat, na medida em que revela esse espírito crítico de investigação permanente, é um itinerário cético.
Um dos méritos do livro de Porchat é o de poder ser lido por pessoas sem formação filosófica específica. O estilo de Porchat é claro e simples, como o exige sua aceitação do discurso comum, sem deixar de ser, por isso, belo e elegante, o que mostra ser possível filosofar com profundidade sem um linguajar obscuro e rebuscado, do qual ele desconfia. Trata-se de um discurso bem amarrado, em que uma argumentação sólida e rigorosa revela um trabalho intenso.
Filosofia e história da filosofia entrelaçam-se no pensamento de Porchat. Assim, por exemplo, quando defendia um realismo metafísico, o ceticismo era interpretado como uma postura insatisfatória por conter em germe o mentalismo cartesiano. Ao aderir ao ceticismo, Porchat reformulou sua interpretação do ceticismo grego, recusando-lhe qualquer mentalismo e ressaltando a novidade cartesiana.
Uma melhor leitura histórica do ceticismo permitiu-lhe alterar sua posição pessoal, assim como uma reflexão pessoal mais acurada permitiu-lhe reavaliar interpretações propostas. Se antes da chegada do método estruturalista, nossa vã filosofia não passava de disparates e se, após sua chegada, nossa filosofia se limitou à historiografia (para o nosso bem, diga-se de passagem), parece que estamos vivendo um momento de união entre o rigor histórico e a aventura da reflexão pessoal. Esse é, talvez, o maior mérito do livro de Porchat, o de lançar-se à elaboração de uma filosofia própria, ao mesmo tempo em que exibe um conhecimento histórico preciso e rico. Porchat convida ao diálogo filosófico.

PLINIO JUNQUEIRA SMITH é doutor em filosofia pela USP, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e autor de "O que é ceticismo" (Brasiliense)

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