São Paulo, domingo, 19 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Química põe à prova a natureza dos sucos

Autoridades combatem empresas fraudadoras de suco de laranja

DA "NEW SCIENTIST"

Em setembro passado, a Flavor Fresh Foods, de Chicago, nos Estados Unidos, confessou-se culpada de fraudar os consumidores em mais de US$ 40 milhões ao vender o que ela alegava ser suco de laranja puro, mas que na realidade não o era.
A fraude era elaborada. Primeiro, a empresa Peninsular Products, de Michigan, enviava o suco do Brasil para uma empresa canadense, que acrescentava açúcar. Depois o suco era remetido à Flavor Fresh Foods, que o diluía com um subproduto residual amargo e barato de laranjas espremidas. Para tentar encobrir a adulteração, a Flavor Fresh também acrescentava ácido cítrico e aminoácidos, que ocorrem naturalmente em sucos de laranja.
A seguir o suco retornava à Peninsular, que acrescentava mais suco de laranja, mais subprodutos amargos e um conservante. Finalmente a Flavor Fresh e a Peninsular vendiam o suco adulterado a clientes que incluíam hospitais, escolas e asilos para idosos.
O proprietário da Flavor Fresh, James R. Marshall, foi multado em US$ 125 mil e condenado a mais de três anos de prisão por sua participação na fraude.
Os sucos de frutas representam grandes negócios. Só o Reino Unido consome cerca de US$ 1,3 bilhão anual em sucos. O mercado anual de sucos nos EUA vale US$ 12 bilhões. Numa pesquisa publicada em 1991, o Ministério britânico de Agricultura, Pescado e Alimentos descobriu que 16 das 21 principais marcas de suco de laranja vendidas no Reino Unido continham substâncias adicionais, como açúcar de beterraba.
Os fabricantes que rotulam seu produto como "suco de laranja" precisam extraí-lo da polpa da laranja, mas são autorizados a processar o suco de determinadas maneiras. Por exemplo: podem concentrá-lo, por evaporação, antes de embarcá-lo para diferentes partes do mundo, acrescentando água quando ele chega a seu destino. Mas neste caso a embalagem precisa explicar que o suco é feito a partir de um concentrado. A lei diz que os rótulos dos sucos não podem induzir ao engano.
Os incentivos à fraude são evidentes. Segundo Allan Brause, diretor da Analytical Chemical Services, um laboratório particular de Columbia, Maryland (nordeste dos EUA), o suco feito 100% de laranja custa cerca de 20% mais do que o suco composto em 70% por polpa de laranja, 15% de açúcar de beterraba e 15% de subprodutos residuais.
"A fraude alimentar é altamente lucrativa", diz Martin Stutsman, da FDA (iniciais em inglês da Administração de Alimentos e Medicamentos, do governo norte-americano). Desde 1986 a FDA já processou vitoriosamente quase uma dúzia de fabricantes de sucos por fraude. Em suas investigações, ela utiliza informações fornecidas por funcionários das empresas e a perícia dos químicos alimentares, que recorrem a uma bateria de técnicas avançadas como a espectroscopia de massas e a cromatografia.
A fraude alimentar evoluiu, transformando-se de truque barato em ciência sofisticada. Isto faz com que seja difícil de detectar. Segundo Stutsman, o fato de haver muito dinheiro envolvido leva as empresas a se darem a grande trabalho para ocultar os indícios de fraude.
Na batalha contra a fraude alimentar, os responsáveis pela proteção ao consumidor de ambos os lados do Atlântico estão adotando métodos analíticos avançados.
Uma destas técnicas é a espectroscopia de massas, com a qual pode-se medir a proporção de dois isótopos de oxigênio –o oxigênio 16 e o oxigênio 18, mais pesado– presentes no suco de frutas. O isótopo mais pesado, responsável por cerca de 0,2% de todo o oxigênio, fica um pouco mais concentrado na água em plantas em crescimento, porque apresenta tendência menor a evaporar. Consequentemente o oxigênio 18 é mais abundante no suco puro do que em água oriunda de fontes não biológicas. O suco diluído em água terá uma concentração menor de oxigênio 18 do que o produto natural.
Mas existem maneiras de escapar do teste. Ed Bodine, proprietário da empresa Bodine Juice (EUA), ficou preso por dois anos e foi multado em US$ 200 mil em 1987 por vender suco de laranja no valor de milhões de dólares, adulterado com açúcar de beterraba, resíduos e suco de grapefruit, que é mais barato do que suco de laranja. Durante a investigação, iniciada em 1978, a FDA encontrou documentos comprovando que Bodine havia recorrido a várias manobras para fraudar o teste do oxigênio 18.
Em lugar de utilizar água da torneira para diluir o suco, ele acrescentava água que havia sido destilada, de modo que produzia uma "assinatura" de oxigênio 18 mais próxima à do suco puro. A fonte mais próxima de água destilada, no seu caso, era água de esgotos tratada, de sua estação local de tratamento de água.
Os químicos alimentares também aproveitam o fato de que frutas plantadas em diferentes regiões contêm quantidades características de substâncias químicas conhecidas como flavonóides, que afetam sua cor. A cromatografia pode separar estas substâncias, fornecendo evidências sobre a origem da fruta. Utilizando esta técnica, é possível diferenciar um suco originário da Flórida, preferido pelos americanos, de um suco importado, mais barato.
Uma técnica que os fraudadores ainda não conseguiram enganar é o chamado "fracionamento de isótopos naturais específicos de determinado ponto por ressonância magnética nuclear", ou SNIF-NMR.
Com este método, mede-se a quantidade de deutério, o isótopo pesado estável do hidrogênio, nas moléculas tiradas de uma amostra. Quando banhados num campo magnético forte, os núcleos de deutério absorvem ondas de rádio numa frequência definida, que é fortemente influenciada pelos átomos vizinhos. Assim, um átomo de deutério ligado a um átomo de carbono, que por sua vez é ligado a um átomo de oxigênio, produz um sinal em frequência diferente do que quando não existe qualquer átomo de oxigênio por perto. Quanto mais frequentemente houver deutério presente num ponto específico na molécula, mais forte será o sinal para aquele ponto.
Armados com esta informação, os cientistas podem traçar um mapa isotópico da molécula, mostrando os pontos no interior da molécula em que existem mais átomos de deutério. As posições são importantes, porque são determinadas pelas proporções de isótopos nas substâncias das quais as moléculas são derivadas e o processo pelo qual foram criadas.
Hoje o SNIF-NMR está sendo usado para coibir fraudes no ramo dos aromatizantes alimentícios, um negócio que movimenta US$ 2,7 bilhões em nível mundial.
Gilles Martin, da Eurofins, um laboratório particular de química alimentar em Nantes, oeste da França, que desenvolveu o SNIF-NMR, diz que sua companhia encontrou quantidades significativas de produtos fraudulentos em todos os tipos de alimentos e bebidas que analisou desde sua fundação, em 1985.
Martin e Brause dizem que hoje os químicos alimentares oficiais levam vantagem na guerra das fraudes alimentares. Mas apontam que isto é apenas porque muitos dos métodos químicos que permitem mascarar a fraude alimentar são caros demais para serem usados pela maioria dos fraudadores. Martin não vê o futuro com otimismo. "Infelizmente, um químico desonesto pode enganar praticamente qualquer teste".

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Tomate transgênico recebe aprovação
Próximo Texto: Brasileiro prefere fruta fresca
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.