São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 1994
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Polonês arrisca vida por nova literatura

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O polonês Ryszard Kapuscinski (pronuncia-se Richard Kapuchinski), 62, é considerado hoje, por muitos, o correspondente internacional mais célebre do mundo. É antes de tudo um grande escritor de aventuras –as suas próprias.
Kapuscinski viveu 27 revoluções e golpes de Estado a serviço da agência polonesa de notícias entre 64 e 80. Foi condenado à morte quatro vezes.
Numa delas, depois de ser capturado por guerrilheiros ao tentar prosseguir por uma estrada no interior da Nigéria, foi espancado e derramaram-lhe benzina em todo o corpo. Quando ia ser queimado vivo, começou a cantar o hino da guerrilha. Os guerrilheiros acharam graça e o deixaram em paz.
Suas experiências estão narradas em livros que já se tornaram clássicos, como "The Soccer War" (A Guerra do Futebol), sobre a guerra entre Honduras e El Salvador por causa de uma partida classificatória para a Copa do Mundo, e "The Emperor", sobre a queda do imperador Haile Selassié, da Etiópia, entre outros.
A obra de Kapuscinski chega finalmente ao Brasil (sábado) com o livro que escreveu sobre o colapso da União Soviética ("Imperium", Companhia das Letras). O escritor-jornalista falou à Folha por telefone de Berlim, onde atualmente mora e escreve um livro sobre a África.

Folha - Você já disse que, ao escolher um tema particular, está tentando encontrar uma mensagem universal. Qual é a mensagem em "Imperium"?
Ryszard Kapuscinski - Passei toda a minha vida profissional trabalhando em países do Terceiro Mundo. Em 89, com o colapso do comunismo, a noção geopolítica de Terceiro Mundo mudou. Estamos vivendo num novo mundo, não mais dividido pela Guerra Fria, mas por países desenvolvidos e subdesenvolvidos.
No meu ponto de vista, a ex-URSS pertence, com exceção do poder militar, ao mundo subdesenvolvido. Também dediquei meus textos ao problema da descolonização e a União Soviética era o último grande poder colonial do século 20.
Folha - Por que você se especializou no Terceiro Mundo?
Kapuscinski - Nasci numa das partes mais pobres da Europa, que hoje pertence à Belarus. Conheci a pobreza, a fome, me sinto em casa nessas situações. Quando escolhi os lugares das minhas reportagens, estava tentando voltar aos lugares da minha infância.
Nesses países do Terceiro Mundo, você pode ver como as pessoas estão fazendo a história, com todos os erros, todos os dramas e lutas. É um tipo de história que você quase pode tocar, fisicamente. Era esse o meu fascínio. Quando começou a independência da Ásia e da África, me dei conta de que algo crucial estava acontecendo. Nunca mais seríamos os mesmos. O século 20 é o século do nascimento do Terceiro Mundo.
Folha - Você já disse que não gosta de situações perigosas. Por que vive atrás delas?
Kapuscinski - Não vivo atrás (risos). Tragicamente, os acontecimentos mais importantes da história sempre ocorrem nessas situações dramáticas. A história nasce no sangue, como o homem.
A cada ano, cerca de 50 ou 60 jornalistas são mortos. Não é que eu goste de lugares perigosos; eu os detesto. Mas não há outra forma de conseguir informações e de conhecer a verdade, embora você nunca possa conhecer a verdade completa. Mas sua obrigação é chegar o mais próximo.
Folha - Você já foi condenado à morte quatro vezes.
Kapuscinski - O livro que estou escrevendo agora, sobre os 40 anos em que estive em contato com a África, descreve essas situações. Não sei se o termo está correto. Não fui condenado por uma corte, mas por soldados.
Todas as vezes na África, com exceção de uma, em 68, quando decidi refazer o caminho de Che Guevara pela floresta na Bolívia, logo após ele ter sido morto. O país estava sob lei marcial. Fui chamado pelo exército. Queriam me fuzilar e fui salvo por civis que estavam no local. Tive certeza de que ia morrer.
Folha - Você nunca pensou em largar esse trabalho?
Kapuscinski - Nessas horas, sempre penso. Prometo que nunca mais farei isso. Mas alguns dias depois penso em voltar. É como uma doença. Você não consegue se curar. No fundo, eu adoro.
Folha - Em "Imperium" você diz que o nacionalismo, o racismo e o fundamentalismo religioso são os principais problemas da ex-URSS. Alguma coisa mudou na sua opinião desde que publicou o livro?
Kapuscinski - No lugar da Guerra Fria ficamos com dois fenômenos novos: as novas fronteiras do confronto social (racismo, integrismo religioso) mas também novas formas, como a máfia. Não no sentido siciliano, mas como uma força que tem a ambição de substituir os partidos políticos.
Em certas sociedades, a estrutura ocupada por partidos políticos está passando pouco a pouco para as mãos de grupos mafiosos. Voltei semana passada da Rússia. Você percebe que as estruturas da máfia estão se tornando mais fortes que os partidos políticos. A máfia já decide uma série de decisões tomadas pelo parlamento.
É um novo fenômeno que você pode observar também no México e talvez no Brasil. Muitas sociedades no início do século 21 serão confrontadas à infiltração dessas estruturas mafiosas.

LEIA MAIS sobre o escritor Kapuscinski à pág. 5-3

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