São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 1994
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O discurso de Lula

FLORESTAN FERNANDES

O discursode Lula
Nada é mais revelador que o discurso de um candidato à Presidência. Ele pode esconder ou revelar o candidato –sua integridade, sua devoção às causas que propõe, sua identidade com os que ouvem. O discurso também pode ser um ato de reciprocidade, apesar de a pessoa que fala ficar em um palanque e distante da maioria dos ouvintes.
O discurso do dia 12 deste mês colocou Lula diante de uma massa compacta, calculada em 50 mil pessoas. Ele já perdeu os ares toscos do início da carreira. É competente no manejo da linguagem e da forma de compartilhar os sentimentos, estados de espírito e esperanças com aqueles que buscam em suas palavras razões para acreditar que não são párias rejeitados nem vítimas do "inferno da terra". Como João Batista, propaga acusações que fazem estremecer os que são puros ou perseguem a purificação. Como Cristo, oferece a outra face e prega aos "malditos da terra". Esse circuito esgota o substrato do seu compromisso íntimo com o populismo dos de baixo.
Mas há o Lula irônico, que não perdoa os seus detratores e os denuncia com aparente serenidade. As elites políticas das classes dominantes recebem o seu quinhão de respostas ácidas ou polidas, mas sempre devastadoras: experimentam o punho forte do adversário e vêem-se lançadas ao ridículo, que o povo espera e aplaude. Os oprimidos, os trabalhadores do campo e da cidade, os que sofrem calados ou furiosos, os que pagam o preço da "crise econômica" e da cobiça pelo poder, os que perderam a fé nos "políticos", em um país dilapidado pelos que mandam, nacionais e estrangeiros, os que labutam por um lugar ao sol, todos escutam palavras que aquecem os corações. Adquirem confiança em um futuro próximo, a ser criado ao lado desse homem, que veio do Nordeste para cumprir um destino histórico.
Lula não teme que as denúncias que evoca se voltem contra si. E tampouco esconde os diálogos que mantém com os ricos e poderosos para atingir os objetivos que permitam divorciar o presente do passado. O capitalista vacilou, cedeu, acovardou-se. Funciona como um freio e um sanguessuga. É preciso que todos dispam os véus dessa realidade e aprendam que, sabendo usar as mãos, poderão descobrir como usar a cabeça. Aos de baixo cabe produzir outra história, da qual o capitalismo fornecerá o começo da construção de uma sociedade nova.
Lula expõe seus recuos e avanços, seus erros e omissões e como os corrigir. Mas não tenta "substituir o povo" ou protagonizar sua vontade. Pretende que formem o seu partido de esquerda (a sua proposta está no PT) e, através dele, se tornem aptos a ir da revolta surda ou do sofrimento complacente às reformas necessárias e, destas, às transformações profundas, que modificam os agentes humanos e expurgam as civilizações de sua carga de barbárie. Esse contraste no falar, combinando o cotidiano, o prosaico, o complexo e o grandioso, sem rancor e mandonismo, projeta-o como um catalisador na imaginação popular.

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