São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 1994
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Por um novo ensino jurídico

DALMO DE ABREU DALLARI

"O justo equilíbrio de uma faculdade de direito estará, por conseguinte, em saber elevar a mocidade ao plano mais alto, em que se debatem as idéias gerais e os princípios, sem olvido das exigências práticas com que se haverá de defrontar o futuro advogado."(Miguel Reale)

A função social das faculdades de direito é preparar bons profissionais, conscientes e competentes, para o exercício das profissões jurídicas e contribuir para que os conflitos sociais se resolvam por meios pacíficos e com justiça.
Duas questões fundamentais estão exigindo reflexão e ação dos responsáveis pelo ensino jurídico: o que ensinar? Como ensinar?
As grandes transformações políticas, sociais e econômicas, a par dos novos caminhos abertos pela ciência e do extraordinário avanço tecnológico, criaram fatos e situações absolutamente novos, que precisam ser disciplinados para que a convivência humana não seja a "guerra de todos contra todos" prevista por Hobbes.
No mundo inteiro se fala em crise do direito e se propõem novos conceitos.
Os mais otimistas acreditam que esteja nascendo o novo direito, que, sob inspiração e influência dos direitos humanos, deverá repor a justiça como condicionante de toda a vida jurídica.
Outros, no extremo oposto, reclamam apenas eficácia, considerando que se devem procurar fórmulas que assegurem, acima de tudo, o respeito pelas normas estabelecidas, não importa se justas ou injustas.
No Brasil vivemos também esse conflito, com a agravante de que as últimas décadas de nossa história exageraram na valorização das conquistas de natureza econômica.
A ética e o direito passaram para plano bem inferior e o sucesso individual e social passou a ser medido exclusivamente em termos de capacidade para ganhar dinheiro e acumular bens materiais.
Os limites éticos, o respeito à Constituição e às leis, a eficiência dos tribunais, tudo passou a ser avaliado à luz das conveniências econômicas, não importando quem tira proveito da riqueza produzida e quantas pessoas e famílias são atiradas à marginalidade.
É tempo de reagir a essa degradação, que, se não é precisamente a causa, é, sem dúvida, um dos fatores da marginalização dos pobres, da insegurança dos ricos, da violência generalizada e da infelicidade de todos. O povo brasileiro não é feliz e há muito tempo sepultou o mito do "homem cordial" de que falava Sérgio Buarque de Holanda.
A Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, uma das matrizes do pensamento jurídico brasileiro, tem responsabilidade histórica e deve assumir essa tarefa renovadora, associando a ela a escola do Recife, sua irmã gêmea, e outras que se disponham a ser mais do que simples "fábricas de bacharéis", produtoras em série de profissionais mal preparados e, por isso mesmo, malsucedidos, que para sobreviver abrem mão de qualquer exigência de natureza ética.
Vem a propósito lembrar a ponderação de um mestre renomado do direito brasileiro, Miguel Reale: "Ai das Faculdades de Direito que se convertem em meras escolas de advogados: reduzem-se a um melancólico ejetor de falsos conhecedores da lei, porque escravos de fichas e formulários, perdidos o sentido filosófico, o político e o sociológico que emprestam dignidade ética e título científico à jurisprudência".
É evidente que isso não significa ignorar as necessidades e possibilidades práticas e partir para a estratosfera das abstrações filosófico-jurídicas nem deve levar a uma discussão sofisticada sobre metodologia "de ponta", aparentemente moderna mas de pouca relevância prática.
Mais importante do que isso, é indispensável desenvolver um trabalho para que o funcionalismo e o equipamento físico das escolas sejam adequados aos novos tempos.
Foi justamente com essa preocupação que, quando diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, de 1986 a 1990, promovi a construção de um edifício anexo ao prédio tradicional, que deixei quase pronto no momento do término de meu mandato.
O novo edifício contém gabinetes de trabalho para professores, salas especialmente dimensionadas para a realização de seminários e outras dependências de trabalho que não existiam no prédio antigo, planejado no início da década de 30 para outra concepção de ensino jurídico.
Introduzi, também, a informática na Faculdade de Direito, tanto para a administração como para o treinamento dos alunos, reconhecendo que esse é um instrumento necessário para qualquer profissional ou pesquisador do direito nos dias de hoje.
Consciência e experiência, conteúdo e método, teoria e prática, tudo deve ser conjugado para que, renovando-se o pensamento jurídico, seja renovada a formação dos profissionais.
A partir daí poderemos obter legislação mais perfeita, simplificação dos procedimentos jurídicos, maior celeridade nos trabalhos de juízes e tribunais, com o direito realmente assegurado a todo o povo, proporcionando mais justiça do que legalismo e sendo assim um instrumento de paz.

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