São Paulo, terça-feira, 21 de junho de 1994
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Filme de Welles anuncia Brasil sem presente

ARNALDO JABOR

Da Equipe de ArticulistasHenri Bergson, o filósofo, já estava velho quando os irmãos Lumière lhe mostraram uma projeção do cinema, que acabava de nascer. Ele olhou. Quando lhe perguntaram o que achara, ele disse: "Eu acho que o cinematógrafo é muito importante, para que se saiba, no futuro, a maneira como os antigos se moviam."
Estou em Hollywood, em 1981, no salão nobre do Beverly Hilton, onde Orson Welles descolou um cachê para ser mestre-de-cerimônias na festa dos colunistas de Los Angeles que premiou o "Pixote" do Babenco. Quando acabou, Welles veio andando na minha direção. Não aguentei e fui apertar-lhe a mão, falando-lhe de como o amávamos no Brasil etc.
Orson Welles me olhou e, por um segundo, vi que a imagem do Rio de Janeiro brilhou em sua memória: "Muito prazer...", me disse em português. "How is Grande Otelo?" E foi em frente. Eu me lembrei na hora daquela frase de Bergson e pensei que aquele homem conhecera com olhos críticos o Brasil quando eu nascia e levava na memória como se moviam os meus antepassados. Há uma verdade profunda no movimento dos mortos, sabia-o Bergson.
Tempo dos índios
Há pouco, estive em férias (espero que os leitores tenham notado) e fui a um festival na Dinamarca, onde vi um filme semelhante a "Tudo É Verdade". Chama-se "Tigrero" e é um documentário dirigido pelo finlandês Mika Kaurismaki sobre o filme que o grande Samuel Fuller (outro gênio) quis fazer no Mato Grosso em 1951 e não conseguiu.
Samuel Fuller, já com 83 anos, volta em 1992 e exibe para os índios carajás o filme colorido em 16mm que fez há 40 anos na mesma aldeia, no meio da noite da floresta. Talvez as cenas mais emocionantes que já vi: os rostos dos índios vendo seus antepassados e a si mesmos (garotos virados em velhos, mortos redivivos, viúvas vendo os maridos dançando coloridos).
Eu vi os índios descobrindo o tempo. Como um milagre, eles ressuscitavam, e seus rostos de encantamento se vendo em cores no passado evocavam a essência do cinema segundo Bergson. Tudo parecia uma máquina do tempo; era um desses momentos em que a arte parece tocar alguma essência, fura a metáfora e toca o real.
Tempo da miséria
Volto ao Brasil e corro para o filme de Orson Welles, louco para ver o meu passado no Carnaval de 1942 (como os índios de Fuller), tentando descobrir algo que "me explicasse", nos explicasse o que é isso que nos tornamos. E aí o choque foi total. Porque vi que há três "tempos".
Eu tinha visto o tempo dos índios de Fuller; e então, vi o tempo dos jangadeiros no filme de Welles em Fortaleza e vi o tempo da classe média, povinho e políticos urbanos de 50 anos atrás.
O primeiro choque é que no "tempo" dos índios o presente parece ser "antes", parece estar no filme que eles vêem.
Havia uma sincronia entre a natureza e os índios de 1951, de quem hoje os índios-espectadores de calção e relógios parecem antepassados.
Filmada nos mesmos ângulos hoje, a aldeia parece uma decadência de um "presente-passado". Hoje há entre os índios uma espécie de "decorrer", um "devir" que antes não havia. Hoje, os índios carajás estão em trânsito entre algo que foram e algo que jamais serão. Há em seus rostos de hoje algo novo: o sofrimento.
Hoje, há uma fome de algo que não está ali. O tempo foi uma doença que passamos a eles. O subdesenvolvimento tinha chegado como um progresso torto. E ficaram estranhamente semelhantes a outro "tempo", visto no filme de Orson Welles: o "tempo" dos pescadores miseráveis do Ceará. Como os pescadores, hoje, os índios são carentes de um "futuro" de que antes não precisavam. Já os miseráveis, no filme de Welles, não foram tirados de nenhum passado "imanente".
Estão exatamente iguais ao que foram há 50 anos. Os mesmos rostos, o mesmo sofrimento que, mais tarde, os índios contrairiam, como uma doença incurável. Com os índios, a sensação é de que foram jogados no passado (que é hoje); já os jangadeiros miseráveis de hoje poderiam estar lá em 1942. Poderiam viajar para o passado sem sair do presente. Miséria é miséria em qualquer tempo.
Tempo das ilusões
Nada mudou em 50 anos. Talvez só o enquadramento nos filmes. Orson Welles filmou os miseráveis pescadores sempre com câmera baixa (em "contre-plongé"), seus rostos sofridos contra o céu, igual a Eisenstein em "Que Viva México". Por que filmavam os pobres sempre de baixo, contra o céu? Talvez porque eles teriam um futuro (achava-se).
E vi no filme de Welles o terceiro "tempo". O tempo dos políticos, os bailes de Carnaval coloridos, a narração retumbante e demagógica dos telejornais do Departamento de Propaganda do Estado Novo.
E aí, o terceiro choque. Além da dilacerante nostalgia que nos dá ver nosso misterioso país em cores há 50 anos, o terceiro tempo, o tempo da realidade urbana passada, não mostrava (ao contrário dos índios) uma integridade perdida, mas uma ingenuidade indefesa diante das câmeras.
Sente-se nos corpinhos dançantes dos anos 40 o culto a uma malemolência carioca, o molejo molengo dos burocratas da capital, o culto a uma malandragem frágil, um individualismo rasteiro e, mais que isso, a clareza de que, mesmo em 1942, eles estavam "aquém" de um presente. Os índios tiveram um "presente" no passado. Os jangadeiros miseráveis estão aprisionados em uma miséria eterna.
As classes médias de 42, povo e políticos, pareciam "aquém" de um presente. Já faltava algo ali naquele passado. Vendo filmes americanos dos anos 30 e 40 não sentimos falta de nada. Com suas geladeiras brancas e seus telefones pretos, tudo funcionava. O "hoje" deles é apenas uma decorrência daquele passado. Nos EUA, o passado estava de acordo com sua época.
Nosso passado estava "aquém" daquele tempo. Os poucos filmes de época que temos passam a sensação de que todos morreram sem ter conhecido seus melhores dias. Mesmo os filmes de ficção são um documentário de uma forte carência nos rostos das pessoas.
A ilusão e a fraqueza são visíveis naqueles sambas lindamente coloridos num Carnaval sem som, com pobres baianinhas de tímidos meneios, corsos, confetes, praia de Copacabana com galãs imitando Clark Gable e com Grande Otelo fazendo desde sempre sua boca de chupeta colonial. Éramos carentes de alguma coisa que não sabíamos. Olhando nosso passado é que vemos como somos atrasados no presente.
Lembro dos olhos de Orson Welles quando, em 1981, lhe disse do Brasil e lembro que, num segundo, vi que ele se lembrava ali do vazio brasileiro que ele tinha percebido antes de todos nós: "How is Grande Otelo?"
Como os mortos do passado, passaremos sem conhecer um presente. No futuro, não acreditaremos que fomos hoje assim. O atraso cria a mística de que algo virá, talvez num "claro instante", como disse Lévi-Strauss em "Tristes Trópicos". Ser "sub" não é não ter futuro; é não estar nunca no presente.

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