São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 1994
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Para advogados, perícia em cinzas é legal

CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Advogados ouvidos pela Folha são unânimes em afirmar que a Justiça pode determinar a realização de exame pericial nas cinzas dos corpos de índios ianomâmis assassinados há 11 meses sem que isso contrarie a Constituição.
O Ministério Público Federal não pediu o exame sob a alegação de que ele desrespeita uma tradição indígena. Os índios cremam os corpos de seus parentes mortos e ingerem as cinzas em rituais que ocorrer anualmente.
O artigo 231 da Constituição reconhece o respeito à organização social, costumes, crenças, línguas e tradições dos índios.
Para os advogados, esse princípio não é absoluto e deve se submeter a outros preceitos constitucionais. "A proteção à vida se estende à exigência de se identificar e punir o responsável por um crime", afirma o advogado Márcio Thomaz Bastos.
Bastos e o advogado Arnaldo Malheiros Filho comparam o exame das cinzas à exumação de cadáveres na investigação de crimes.
"A violação de túmulos é crime e o respeito aos mortos também é preceito de diversas religiões, mas a lei deixa de criminalizar a exumação quando ela é essencial ao esclarecimento de um caso", observa Bastos.
Interesse social
Na opinião de Miguel Reale Jr., advogado e professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), prevalece neste caso o interesse de toda a sociedade em ver um crime contra a vida solucionado.
O Ministério Público Federal responsabiliza 24 garimpeiros pela morte de 16 ianomâmis. Somente o corpo de uma índia foi localizado. Outros 14 corpos teriam sido cremados e um está desaparecido.
O advogado dos garimpeiros, Elidoro Mendes, argumenta que a ausência de corpos impede o julgamento dos acusados. Os advogados ouvidos pela Folha discordam.
"É possível a condenação mesmo sem o cadáver desde que haja outros elementos, como prova testemunhal, que comprovem a existência do crime", diz Evaristo de Moraes Filho, advogado e professor titular de direito penal da (Uerj) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Testemunhos
Nesses casos, dizem os advogados, os testemunhos devem ser consistentes, coerentes e harmônicos a ponto de dar certeza sobre a existência do crime e indícios sobre sua autoria.
Um dos principais elementos da acusação apresentada pelo Ministério Público Federal é o testemunhos de índios sobreviventes.
Malheiros diz que a dispensa do cadáver é "absolutamente excepcional". Bastos lembra que no caso mais famoso de erro judicial do país, o dos irmãos Naves, não foi localizado o corpo da vítima.
"Eles foram condenados no júri e no tribunal. Um deles morreu na cadeia e o outro ficou preso por 12 anos, até que a suposta vítima apareceu viva".
Os advogados preferem não dizer se os depoimentos dados pelos sobreviventes seriam suficientes para a condenação por desconhecer seu teor.
Na hipótese de eles serem consistentes o bastante, alguns advogado acreditam que o exame das cinzas poderia ser dispensado. "A perícia seria complementar, mas não fundamental", opina Moraes.
Malheiros defende o exame das cinzas desde que ele possa definir o tempo em que elas foram produzidas ou a quantidade de corpos a que elas correspondem.
"Não basta dizer que as cinzas são humanas. Se nenhum dos dois pontos for esclarecido pela perícia, ela é inútil" observa.

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