São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 1994
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Infectologia funerária

VICENTE AMATO NETO E JACYR PASTERNAK

VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Medo de morto é comum e em muitas culturas considerado um terrível perigo, com a alma pronta a instalar-se no corpo de alguém que vai ao velório.
Está certo que um famoso traficante do Rio, quando perguntado se tinha medo de morto falou que se tivesse, pois macho não teme essas coisas, seria de vivo, já que dentro do que ele conhecia, morto não atira.
Muitos desses temores refletem-se em ritos funerários para aplacar o morto e capazes de contaminar com pretextos científicos as formas de lidar com cadáveres em nossa sociedade.
Assim, a propósito de algumas doenças, a fim de enterrar o morto exige-se caixão lacrado. Isso não é muito importante na maior parte dos casos, já que se afigura muito difícil o contágio a partir do defunto velado.
Em autópsia é diferente e um estudo recente mostrou que o vírus que causa a Aids fica viável no cadáver durante períodos relativamente longos, que podem ir até uma semana.
Em outras situações, como peste bubônica e na já falecida varíola, também é possível a persistência do patógeno; a peste negra, afinal, chegou à Europa quando um grupo de genoveses foi atacado por meio de catapultas que arremessaram cadáveres da citada peste, numa das primeira aplicações práticas da guerra bacteriológica.
Com sucesso, porque os tártaros tomaram a cidade e os genoveses que fugiram levaram a enfermidade para a Europa, onde ela liquidou cerca de um terço da população.
Contudo, os riscos são muito pequenos. Tirando atitudes teatrais de ficar abraçado ao cadáver ou coisas parecidas, a maior parte das pessoas não se encosta no morto e as bactérias, vírus e piolhos, em velório, não voam.
Necropsia exige mais cuidados e patologistas e seus auxiliares têm conhecimento e protocolos que os protegem, desde que contem com recursos.
A existência do caixão lacrado e dos sussurros dos circunstantes a respeito do perigo que os ameaça liga-se ao medo do inconsciente, da morte em si, e não de um malefício real.
Cada vez menos tem-se exigido o lacramento do esquife, desejado algures quando gozadores dizem que isso é feito para ter-se absoluta certeza de que o falecido não vai ressuscitar.
A Aids vem motivando especulações, adoção de medidas antes pouco destacadas e gerando preocupações. Inclusive, fez recrudescer questões anteriormente abordadas só ocasionalmente e sem muita ênfase.
No momento, assuntos como sepultamento, velório e prevenções em autópsias tornaram-se alvos de abordagens comuns, criando a infectologia funerária.

VICENTE AMATO NETO, 65, médico infectologista, é chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo.

JACYR PASTERNAK, 53, médico infectologista, é chefe de gabinete da Superintendência do Hospital das Clínicas e membro do Grupo de Transplante de Medula Óssea do Hospital Albert Einstein.

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