São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 1994
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Ex-guerrilheiro nega ser o delator de Lamarca

CELSO LUNGARETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No último dia 9, dentro da colaboração habitual que mantenho com o "Jornal da Tarde", foi publicado meu artigo "Lulla lá? Milicos há.", em que adverti que uma eventual vitória de Lula tende a desembocar num novo golpe militar. Foi o bastante para acirrar a ira dos autoritários de esquerda contra mim.
Não só tomei conhecimento de que se discutiam em círculos estudantis possíveis represálias diretas, como me vejo brindado com um duro, extemporâneo e gratuito ataque de Marcelo Paiva, na edição do dia 16 da Folha (no artigo "Polícia Militar conta a história pela metade", à pág. 5-3 da "Ilustrada").
Diz o escritor/redator que "... a VPR de Lamarca instala, em 1969, um campo de treinamento em Capelinha, Vale do Ribeira. Em 19 de abril de 1970, depois da delação de Celso Lungaretti, um ex-guerrilheiro que conhecia bem a área, uma vasta operação militar... cerca a região."
Eis os fatos: treinei guerrilha entre janeiro e fevereiro de 1970, juntamente com Lamarca, Massafumi, Fujimori e outro companheiro, numa área do Vale do Ribeira que se evidenciou inadequada para um trabalho mais amplo. Era muito próxima da rodovia, e os tiros ecoavam a longa distância, então os cinco decidimos abandoná-la.
Lamarca saía constantemente para procurar outra, numa rural pilotada pelo companheiro de codinome Monteiro: partia ao clarear do dia e voltava à noite. Davam a entender que a área definitiva de treinamento guerrilheiro iria se situar bem ao sul, em outro Estado.
Quando, afinal, a área 1 (vamos chamá-la assim) estava prestes a ser abandonada, eu e Massafumi comunicamos que não pretendíamos continuar o treinamento; ele, porque queria abandonar a organização; e eu, porque, traumatizado com a morte de meu colega de infância Eremias Delizoikov, preferia ficar na cidade, mais próximo do grupo de ex-secundaristas que eu havia liderado e em condição de, talvez, defender alguns deles.
Ao partirmos, Lamarca me pediu que, em hipótese alguma, revelasse à polícia aquela área 1, embora fosse ser desativada. Entretanto, sob intensa tortura (a cabo ainda na semana passada de operar pela terceira vez o tímpano, estourado na ocasião), aquele terreno inútil era o que de menos importância havia para contar. Foi um enorme azar: a compra daquela área fora intermediada por um ex-prefeito de Jacupiranga, que auxiliava a VPR.
Como a organização estava sem aliados em número suficiente, recorreu-se à mesma pessoa para conseguir uma nova área, que era a tal de Capelinha, onde eu nunca estive nem nada sabia sobre ela. Como havia outros companheiros presos que, estes sim, haviam estado na área definitiva –e a repressão sabia disto–, nunca tive certeza se chegaram a Capelinha após terem prendido o ex-prefeito "Manelão" ou devido a outras informações.
Posso ter sido responsável involuntário pelo episódio, mas não o delator que Marcelo Paiva pinta; era, ainda, um guerrilheiro, mesmo preso, e não o "ex-guerrilheiro" a que ele pejorativamente alude; e este caso acabou levando à minha ruptura com a VPR, o que até hoje é motivo de ressentimentos de quem não esteve no fogo, mas tem opiniões muito claras sobre como os outros deveriam se queimar.
Lamarca, tendo cometido uma terrível falta em termos de segurança –servir-se do mesmo aliado para adquirir uma área destativada e outra operacional–, quis que eu ficasse exatamente onde estava: preso e sob torturas no DOI-Codi.
Com isto, quebrou uma regra sagrada da organização, pois, após recebermos informações erradas de companheiros presos (descarregando culpas sobre outros), decidíramos que jamais acreditaríamos no que viesse de dentro dos cárceres e, ao sequestrar algum diplomata, faríamos a lista de prisioneiros a serem soltos baseados na utilidade que tinham para a organização.
Eventuais julgamentos de seu comportamento diante dos torturadores se fariam no exterior –poderíamos até justiçá-los, mas jamais deixá-los à mercê da repressão. "Nós aplicamos nossa justiça e não a ditadura", afirmávamos.
Pois bem, no sequestro que houve em junho –se bem me lembro, 40 companheiros foram soltos–, fiquei fora da lista, para surpresa até dos militares do DOI-Codi, que já tinham fechado meu dossiê.
Como consequência –e na medida que perceberam que não havíamos contado tudo que sabíamos e havia sobrado unidades em condições de executar operações guerrilheiras de amplitude–, após dois meses de prisão incomunicável, fui novamente torturado, com violência redobrada. Nestas condições, produziu-se minha "retratação" e meu ingresso no rol dos arrependidos que a ditadura levava à TV.
Enfim, foram tempos tristes, que nos machucaram a todos e levaram companheiros queridos. Deveríamos desejar que nunca se repetissem, em vez de, sadicamente, mexer em velhas feridas.
Espero alguma forma de reposição da verdade dos fatos. Como jornalista, prefiro que isto seja feito de forma amistosa e sem constrangimentos legais. Mas, que doeu, doeu!

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