São Paulo, quinta-feira, 23 de junho de 1994
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Artistas expõem horror da guerra da Bósnia

GINA DE AZEVEDO MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Repita ao infinito a palavra destruição. O que resta sem ser anulado? Sarajevo. A cidade símbolo da nova ordem mundial e da resistência. Com fome e temperatura de 15 graus negativos no inverno, a arte sobrevive nutrindo-se de guerra.
Convidados para participar da Bienal de Veneza, a Organização das Nações Unidas não autorizou um grupo de oito artistas plásticos a sair da capital da Bósnia.
Eles querem expor seu projeto "Testemunhas da Existência" na Bienal de São Paulo e pedem um empenho a favor da libertação.
As obras foram expostas na Galeria Obala no centro de Sarajevo.
"Esta é a primeira galeria de arte mundial na guerra", disse à Folha Mirsad Purivatra, 37, diretor da galeria.
O palácio do início do século com vidros das janelas destruídos foi reformado para a inauguração em outubro do ano passado da mostra de "Retratos de Sarajevo" da fotógrafa americana Annie Leibovitz.
Mesmo durante o inverno a galeria esteve aberta diariamente das 9 às 18 horas e foi frequentada regularmente pelos habitantes de Sarajevo, jornalistas estrangeiros, funcionários da ONU e soldados.
No projeto "Testemunhas da Existência" os artistas reaproveitam material fruto da guerra para construir os trabalhos. Cacos de vidros, pedaços de panos, tijolos, máquinas quebradas e ferros.
Alguns dos artistas usam a ironia como provocação, outros optam pela representação do desespero.
"Sarajevo gosta da América. A América gosta de Sarajevo" dizem as frases da instalação de Sanjin Jukic, 36, escritas abaixo de dois mapas, de Sarajevo e dos Estados Unidos, pendurados na parede.
Este trabalho inclui duas cadeiras e uma mesa de madeira, esculpidas por artesãos muçulmanos da Bósnia, sobre a qual repousam duas latas de coca-cola e xícaras de café típicas bósnias.
A outra obra de Jukic na exposição mostra a palavra Sarajevo escrita em letras gigantes dispostas e iluminadas com o glamour parodiado a Hollywood.
"Já escrevi um dicionário de guerra em sérvio-croato e em inglês com o uso prático de mais de 70 vocábulos e expressões de guerra", disse Jukic, que aguarda condições para publicar seu trabalho.
No segundo andar da galeria Obala, Mustafa Skoplajak, 46, fez uma instalação com esculturas piramidais de estilhaços de vidro ao lado de uma sepultura onde estão rostos de bonecos coloridos representando homens, mulheres, velhos e crianças mortos na guerra.
Skoplajak perdeu sua casa onde arquivava todos os seus trabalhos anteriores à guerra. Atualmente mora com um amigo. É casado.
Sua mulher e a filha de 12 anos tiveram que fugir para a Croácia.
"Destruição Espiritual Rematerialização" é o conceito expresso nas palavras de Zoran Bogdanovic', 36, escritas sobre imensos pedaços de pano. Zoran expõe também o "Memorial das Pessoas" impresso sobre a fotografia de muitos mortos.
Ante Juric, 39, propõe uma performance e com um revólver atira em um quadro de vidro para que o público ouça alguns dos sons da guerra.
Em junho do ano passado Juric executou sua performance no hall do hotel Holliday Inn onde se hospedam os jornalistas estrangeiros.
Sua criatividade não agradou os representantes da imprensa internacional.
Edo Numankadic, 45, optou pela simplicidade da cenografia composta por uma janela colorida, duas cadeiras e uma mesa sobre a qual está um vaso de flores artificiais, uma garrafa de água, pão, livros e outros objetos de uso cotidiano.
Petar Waldegg, 43, idealizou a reconstrução de casas com as primeiras paredes e muros de tijolos.
Diplomado pela Escola de Belas Artes de Sarajevo, Petar se especializou em gráfica e já participou de diversas exposições internacionais. Escreve também poesias.
Radoslav Tadic, 47, expõe cinco gravuras acima de pequenos armários de cozinha em fórmica iguais e um prato com macas. Ele define sua obra como uma memória da pequena burguesia que, em contraste com o sofrimento atual, desperta a vontade de morte.
Nustret Pasic, 43, amarrou do teto ao chão da galeria uma série de faixas de algodão com figuras longilíneas pintadas em diversas cores. As faixas se movem com o vento.
Nustret apresenta um outro trabalho com pequenas esculturas em ferro aproveitado de carros destruídos sobre tijolos.
A maioria dos artistas de Sarajevo é pacifista e de origem muçulmana. "Diante de tanta crueldade e destruição, é mais fácil odiar o ser humano. Difícil é manter a sua integridade pacifista" disse Sanjin Jukic à Folha.
Segundo Purivatra, diretor da galeria Obala, os artistas desejam sair da cidade somente para expor em diversos países e transmitir as interpretações e sensações de quem viveu na guerra.
A esperança ainda não foi sufocada pelos monstros de Pandora.
"Queremos participar da próxima Bienal de São Paulo. Apelamos para que as autoridades brasileiras peçam a ONU a permissão para a nossa viagem", disse o diretor.
Cercada pelos sérvios, Sarajevo sufocada não se rende nem se ilude. A história recorda as cruzadas do Império Otomano, a Varsóvia prisioneira dos nazistas, e agora assiste a criação de uma Palestina européia.
As Testemunhas da Existência vivas em Sarajevo poderão ser póstumas. Suas imagens vão permanecer registradas apenas na memória de quem as viu.
Restarão também documentos arquivados pelas televisões para que o mundo inteiro saiba que este espetáculo de horror existiu realmente.
Lembranças de Sarajevo. Saudações a você para que não se esqueça. Salve!

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