São Paulo, sexta-feira, 24 de junho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dunga usa paciência como arma

ALBERTO HELENA JR.
ENVIADO ESPECIAL A LOS GATOS

Dizem que o povo das Sete Missões, na fronteira com o Uruguai, tem um senso de vigilância mais agudo e alma "mais brasileira" que o resto da nação.
Dizem mais: que seu sentimento de coletividade é tão forte que pôde resistir a todos os cercos a que foi submetido, como os pioneiros norte-americanos que se instalaram na Califórnia.
Pois Carlos Caetano Bledorn Verriele, 30, o Dunga, veio de lá. Ele é de Ijuí, a um passo da fronteira uruguaia, e seu futebol é a própria essência desse espírito guerreiro, vigilante, fronteiriço e comunitário.
É esse estilo de jogo que o meia pretende apresentar hoje, contra a seleção de Camarões.
Recuperado para a partida, depois do choque que sofreu contra um jogador russo no jogo de segunda-feira, Dunga acredita que a seleção de Camarões entrará no jogo de hoje com um esquema defensivo.
Ele espera que o adversário inicialmente prefira se defender, como fazem, segundo ele, todos os times que enfrentam o Brasil.
Dunga afirma que no futebol atual não há mais lugar para um lançador com funções semelhantes às de Gérson, na Copa de 70.
Em sua opinião, os lançamentos atualmente só são possíveis quando o adversário está partindo para o ataque e sua bola é roubada.
Nessas condições, o time pega o adversário com a defesa desarticulada.
O jogador diz usar a paciência como arma. Ele defende a troca de passes lateralmente no meio-campo até que se abram espaços para enfiadas de bola.
Dunga diz que não se julga um líder na seleção e não se importaria em ir para a reserva. Tudo em nome de uma vitória na Copa –herança do espírito comunitário da fronteira.
Ele prefere considerar que essa tendência a compartilhar responsabilidades e méritos, além do jeito "brigador", nasceram mesmo em seu sangue, uma mistura de alemães –os Bledorn, por parte de mãe– e italianos - os Verri, por parte de pai.
O futebol já corria nas veias dos Verri. Seu pai, Edelceu, era um centroavante rompedor. Não conseguiu, porém, romper o cerco das Missões e ficou batendo bola pela região até se transformar em modesto funcionário público.
Mas seu tio, Marimba, chegou a ser o centromédio campeão de 54 pelo Grêmio, orgulho da família.
Desde menino, Dunga –um tipo atarracado, de pernas curtas e grossas, cabelos espetados e rosto "talhado a faca"– corria atrás da bola com a mesma determinação com que o sangue imigrante lhe corria nas veias.
Escorpiano do dia 31 de outubro de 63, o meia não é supersticioso, nem acredita em milagres. Apenas tem fé no trabalho e no esforço individual e coletivo.
Dunga diz que não se deixa deslumbrar pela fama e pela fortuna. Para ele, a glória das vitórias é passageira e as derrotas levam as pessoas sempre a procurarem um culpado.
Ninguém mais que ele experimentou o peso da culpa, quando o Brasil foi desclassificado da Copa do Mundo de 90.
Desde então, Dunga foi apresentado como a personificação do fracasso. Criou-se até a expressão era Dunga para se referir a um estilo de jogo defensivo e baseado na destruição mais do que na criatividade.
Dunga, no entanto, se considera um vencedor desde o início da carreira, quando se apresentou no Internacional de Porto Alegre, no começo dos anos 80.
Seu ídolo é sua própria imagem invertida pelo espelho: Paulo Roberto Falcão, o elegante médio colorado, que tratava a bola com o esmero de um artista, embora também corresse atrás do adversário com a gana de um sulista.
E foi a glória de falcão, sua ida para a Itália, que abriram as portas para Dunga. Partiram Falcão, Batista, Caçapava, Carpegiani, Jair, enfim, aquela geração ilustre de meio-campistas do Inter, bicampeão brasileiro em 75-76.
Dunga foi logo se "enfiando" no meio-campo titular, entre Ademir e o uruguaio Rubem Paz.
O jogador experimentou então o gosto da conquista de um título: campeão gaúcho em 83, pelo Inter.
Em seguida, sagrou-se campeão pré-olímpico, campeão mundial sub-23 anos e ainda trouxe a medalha de prata das Olimpíadas de 84.
Nesse ano, transferiu-se para o Corinthians. Um ano depois, jogou pelo Santos e foi, logo após, para o Vasco.
Falcão, seu ídolo, já há algum tempo ostentava a coroa de Rei de Roma, e isso contribuiu muito para que as fronteiras da Europa se abrissem para brasileiros.
Dunga embarcou nessa leva e foi aportar primeiro em Piza. Depois foi para a Fiorentina, time em que exerceu forte liderança sobre seus companheiros.
Teve também uma breve passagem pelo Pescara. Agora, Dunga joga pelo Stuttgart, na Alemanha, onde se reencontrou com o espírito guerreiro germânico.
Por isso, quando Dunga saiu do treino de anteontem com uma bolsa de gelo atada a sua coxa esquerda, não havia por que temer por sua ausência no jogo de hoje.
Não é fácil tirá-lo de uma partida da Copa do Mundo, especialmente da segunda de sua carreira.
O jogador acredita firmemente em continuar correndo com o mesmo empenho atrás da bola até os 36 ou 37 anos de idade.
Caminha calmamente, mancando um pouco, em direção à salinha montada pela Coca-Cola ao lado da área de entrevistas, passagem de um campo de treinamento ao outro da Universidade de Santa Clara.
A universidade fica a cerca de 20 milhas de Los Gatos, onde está a concentração brasileira, e a umas 40 milhas de San Francisco, a maior cidade da região.
Foi lá que Dunga concedeu a seguinte entrevista exclusiva à Folha.

Folha - Como aconteceu essa contusão?
Dunga - Não deu pra perceber. Foi numa jogada confusa em que um russo me acertou. Mas isso não é nada. Formou um calombo na coxa, mas com gelo e um pouco de descanso, passa.
Folha - Não há nenhum risco de você ficar de fora do jogo contra Camarões?
Dunga - Nem pensar, chê! Isto não é nada.
Folha - Essa coisa de não dar bola pra contusão também ajuda no fortalecimento da imagem de uma equipe vencedora?
Dunga - Olha, o pessoal que está aqui –os jogadores– é muito experiente. Todos já conseguiram tudo que o futebol pode oferecer. Só falta o título mundial. E eles estão determinados a conseguir isso.
Além do mais, ninguém aqui se deixa impressionar com atitudes desse tipo. Eles sabem o que querem.
Folha - E o que você quer? Vingar-se dos que o estigmatizaram com aquela coisa de era Dunga e tudo o mais?
Dunga - Não. Honestamente, não. Aquilo foi uma reação normal. Quando se perde, busca-se sempre um culpado.
Na Copa de 90, escolheram a mim como culpado. Mas eu tenho a convicção de que cumpri meu papel. Estou em paz com a minha consciência.
Além disso, não costumo ter esse tipo de sentimento negativo, de vingança, por exemplo. Eu prefiro o lema viver e deixar viver.
Claro que as críticas maldosas, aquelas que entram na sua intimidade, que falam de suas coisas particulares, essas me irritam. Mas a crítica construtiva, eu aceito.
Folha - Então vamos a uma delas: você não acha que Mauro Silva e você, num mesmo meio-campo, é uma redundância?
Dunga - Não, não acho. o futebol segue um princípio básico –independentemente de esquemas. Esse princípio diz que você só pode jogar se tiver a bola nos seus pés.
Ora, alguém precisa tomar essa bola do adversário. E é isso que nós –eu e o Mauro Silva– fazemos.
Folha - Pois é. Mas quando temos a bola, a saída de jogo é muito lenta, sem imaginação.
Dunga - Não concordo. No futebol de hoje, os espaços estão muito reduzidos. Não há mais lugar para um lançador do tipo Gérson, a não ser quando você rouba a bola do adversário no instante em que ele está partindo para o ataque.
Aí, sim, abrem-se espaços lá na frente. E, se você fizer um levantamento dos gols que esta seleção marcou até agora, muitos são de jogadas assim, em que eu ou o Mauro metemos uma bola longa para o nosso ataque.
Mas, no geral, todo mundo quando enfrenta o Brasil, fica lá atrás, com oito jogadores na defesa.
Somem-se a esses, os nossos –meio-campo, ataque, laterais– e teremos cerca de 16 jogadores em 15 metros quadrados. Não dá.
Folha - Que fazer, então?
Dunga - Aí o único jeito é ficar tocando a bola da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, como num leque, um toque balanceado.
Não parece, mas com o calor que faz aqui na hora do jogo, os caras cansam de correr daqui para lá, na marcação do homem e da bola. Ou cansam ou se distraem.
Pronto, é o bastante para alguém lá na frente se desmarcar. Então, mete-se a bola pra ele.
Como nós temos dois atacantes –o Bebeto e o Romário– que são implacáveis na área, o gol é inevitável. Uma hora tem de sair. Mas é um jogo de xadrez, um jogo de paciência.
Folha - Haja paciência! Isso significa que 2 a 0 é goleada brasileira nesta Copa?
Dunga - Isso significa que nós queremos vencer. Se todos os jogos terminarem 1 a 0 para o Brasil, seremos campeões, e é só isso que queremos.
Folha - Mesmo assim, será que o Cafu no seu lugar não daria maior poder de penetração nesse meio-campo?
Dunga - Bem, essas coisas é o técnico que resolve. Ele tem jogadores de vários estilos e pode armar o time como achar melhor.
Eu, particularmente, quero é ser campeão. E, neste grupo, você percebe que ninguém chia por ficar na reserva. Todo mundo está pensando assim: não interessa quem joga, interessa é ser campeão.
Folha - Nessa decisão do técnico pesa o fato de você ser considerado o líder? Você se considera um líder?
Dunga - Não me considero um líder. Aliás, nesta seleção, praticamente todo mundo é lider. Apenas eu tenho o hábito de gritar, falar, reclamar, orientar os companheiros. Isso faz parte da minha personalidade. Sou assim e pronto. Mas acho que é também pela posição que ocupo no campo. Você, ali na meia cancha, tem uma visão mais abrangente do jogo. É só isso.
Folha - Você fala muito em grupo, aliás palavrinha que já enjoou, mas vamos individualizar este papo. Você se considera um craque?
Dunga - Fala-se muito em craque, no Brasil. Um jogador, de repente, é rotulado de craque porque fez uma jogada sensacional. Ou porque faz um jogo brilhante.
Mas craque, para mim, não é aquele que joga bem uma entre dez partidas. Faz uma boa e dez ruins. Isso não é craque. Craque é o que joga nove bem e uma mal.
O meu futebol, por força da minha posição, que exige, acima de tudo, regularidade, é essencialmente de combate.
Mas, com a bola nos pés, sei lançar, passar, chutar a gol, dar meus dribles.
Acho que o mais importante para um meio-campista é a consciência tática, é saber se colocar em campo e orientar os companheiros nesse sentido.
Às vezes, um passo para cá ou para lá é que faz toda a diferença.
Folha - Você diz que todo mundo joga retrancado contra o Brasil. E Camarões, você acha que vai jogar assim também?
Eles me dão a impressão de que jogam mais por instinto do que por tática. E o instinto deles é matador. Saem com tudo para o ataque.
Dunga - Não sei, não. Se vierem pra cima da gente, é melhor pra nós, claro, pois teremos espaço para o contragolpe.
Mas não acredito. Acho que eles vão se defender primeiro, para depois atacarem, quando tiverem chance.
Folha - Desconfio que eles nem sabem fazer isso, jogar defensivamente. Mesmo assim, com aquele goleirinho...
Dunga - Ele pode ter falhado contra a Suécia, mas o Ricardo Gomes, antes de ir embora, me disse que ele foi o melhor goleiro do campeonato francês.
Aqui ninguém é bobo. Quem chega a uma Copa do Mundo vem credenciado. Portanto, todo cuidado é pouco.
Folha - Por falar nisso, o que você achou dos nossos principais adversários, a Alemanha, a Argentina e a Itália?
Dunga - Joguei muito tempo na Itália, conheço os jogadores que aí estão. São muito bons. Acho que a estréia pesou. Mas eles vão dar a volta por cima.
A Argentina, sim, fez uma bela exibição. Mas a Argentina jogou com quatro atacantes –Simeone, Caníggia, Batistuta e Maradona.
Contra nós, nunca que eles jogariam assim. E, mesmo que entrassem com quatro atacantes, eles iriam se fechar lá atrás.
A Alemanha é um futebol de 90 minutos. Eles tem uma disciplina impressionante. Não essa disciplina de aluno de escola. Mas a disciplina do jogo.
Nenhuma partida está perdida, não importa o resultado. Eles buscam o gol até o apito final do árbitro.
Folha - É verdade. A gente vê isso, pela TV, no campeonato alemão. Faltam cinco minutos pro jogo acabar e o resultado ainda não está definido.
Dunga - Apesar disso, eles também jogam fechadinhos lá atrás.
Folha - Só que tem uma diferença: Lothar Matthaeus, que sai lá de trás para armar o jogo no meio-campo e ainda ir finalizar na frente.
Dunga - Na seleção, não. Na seleção, ele fica lá atrás mesmo. No Munique é que ele sai para jogar.
Mas, lá, na verdade, o que ele faz é uma troca com um homem de meio-campo. Ele avança, passa a jogar de armador e o outro desce para o seu lugar de zagueiro.
Aquele líbero que defendia e atacava não existe mais. Aliás, só existiu com o Beckenbauer, que era um diferenciado, e porque o futebol daquele tempo era outro.
Folha - Resumindo: vai ser uma árdua batalha, mas sairemos daqui com o caneco na mão?
Dunga - É, vai ser uma guerra. Não dá pra dizer que seremos campeões, mesmo porque quando se começa a dizer isso, é como se a força interior fosse escapando.
O melhor é alimentar esse desejo lá dentro, fazendo ele crescer. Fazer e não falar.
Portanto, não digo que seremos campeões. Apenas desejo isso.

Texto Anterior: Pelé faz 'luvinha da vitória'
Próximo Texto: QUEM É DUNGA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.