São Paulo, sábado, 25 de junho de 1994
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Neoliberalismo chega à Idade da Pedra

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: The Flintstones - O Filme
Produção: EUA, 1994, 90 min.
Direção: Brian Levant
Elenco: John Goodman, Elizabeth Perkins, Rick Moranis, Rosie O'Donnell, Kyle MacLachlan
Onde: cines Comodoro, Metro 1 e 2, Metrópole, Astor, Gemini 1 e 2, Top Cine, Center Iguatemi 1 e 3, Eldorado 4 e 5, Morumbi 1, 2, 3 e 4 e circuito; cópias legendadas e dubladas.

Em 1960, quando vieram ao mundo, os Flintstones eram bem diferentes: encravados entre a Idade da Pedra e a ficção científica, viviam num mundo despreocupado. A própria forma de desenho animado lhes dava uma leveza que coincidia com a época: a pré-história nada mais era do que uma antecipação do mundo de conforto do século 20, do "american way of life" e da crença ilimitada no progresso tecnológico.
Quase tudo muda entre o desenho e "The Flintstones - O Filme". As figuras dos desenhos tornam-se reais, claro, assim como os cenários. Mas, com isso, algo mais se transforma.
É verdade que os produtores acharam tipos que não traem os desenhos: Fred (John Goodman), Wilma (Elizabeth Perkins), Barney (Rick Moranis) e Betty (Rosie O'Donnell) correspondem com fidelidade mais que razoável aos desenhos da TV.
Também suas personalidades e modos de agir não traem a lembrança que se possa ter. Mas já os cenários anunciam as mudanças. Ao passarem do desenho à "vida", tornam-se mais carregados, quase lembrando certos filmes de Terry Gilliam ("Brazil", por exemplo).
A diferença é que Gilliam procura esse tom carregado deliberadamente, enquanto em "The Flintstones" isso é consequência da passagem do desenho ao filme.
Mas a mudança mais significativa não vem daí. Já o roteiro está em completa ruptura com as antigas crenças enunciadas nos desenhos da Hanna-Barbera.
No início, existe uma "memória": Fred é operário da pedreira, feliz jogador de boliche, marido amantíssimo de Wilma, amigo fiel de Barney etc.
O acaso leva-o a se tornar executivo na pedreira. É quando as coisas começam a mudar substancialmente: ao mesmo tempo em que Fred enriquece, "The Flintstones" dedica-se a uma crítica feroz do neoliberalismo.
Lá estão as demissões em massa em nome da produtividade; as manobras que buscam esmagar a concorrência. Lá estão também os subprodutos imediatos desse capitalismo selvagem: o arrivismo, o luxo despropositado e, sobretudo, o "yuppie" pré-histórico, Cliff (Kyle MacLachlan), vilão que pretende dar um golpe na pedreira e jogar a culpa no ingênuo Fred.
Em sua passagem para filme, "The Flintstones" joga uma questão política atual: que espécie de mundo é esse em que o progresso prevê a exclusão do mercado de trabalho de largas fatias da população e, de passagem, exclui de seu horizonte qualquer preocupação moral? Trata-se de uma pré-história, parece concluir o filme de Brian Levant.
A partir do momento em que são lançados esses dados, a terra dos Flintstones já não tem nada a ver com o mundo seguro e quase paradisíaco dos desenhos. O diretor Brian Levant opta pela descrição de um inferno.
Talvez por isso fosse possível distinguir duas reações diferentes da platéia. No início, é possível rir abertamente, tanto com os "gadgets" quanto com certos achados felizes (por exemplo, quando se torna executivo Fred ganha uma secretária chamada Sharon Stone). Num segundo momento, há pouco para rir: mesmo diante de uma boa gag o riso se trava, tal a violência das situações enunciadas.
O mérito principal de "The Flintstones - O Filme" consiste na capacidade de atualizar de maneira conveniente os dados do desenho original, evitando a armadilha de permanecer preso a um mundo que já não existe.
Ao fazer essa atualização, o filme consegue manter-se fiel ao imaginário que fez a fama dos Flintstones. Talvez se possa atribuir a isso a parte do leão no êxito que o filme está conseguindo. Em todo caso, não se pode esquecer a boa escalação do elenco: ele funciona no conjunto, embora John Goodman sobre –ele é ótimo ator e faz um Fred admirável.

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