São Paulo, domingo, 26 de junho de 1994
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'O conceito de classe social deve ser revisto'

BETTY MILAN

Continuação da pág. 6-6

Pela terceira vez, desligo o gravador e digo a Derrida que me disponho a voltar num outro dia, ainda que isso implique em viajar 500 quilômetros. Derrida quer saber para onde vou. Respondo que vou passar uns dias no interior da França, escrevendo. Inesperadamente, ele resolve continuar a falar e aborda a questão da luta de classes e da dialética.

Derrida - O gravador está funcionando? Vamos tentar. No que concerne à luta de classes, procurei mostrar que o esquema da luta dos antagonismos e da dominação de uma força social por outra é irredutível.
Numa situação social dada, existem relações de força, de dominação e estas relações estruturam a sociedade. Dizer isso significa não renunciar à idéia de conflito, mas não significa definir os termos dessa luta baseando-se no conflito de classes sociais.
O conceito de classe social hoje precisa ser retrabalhado. Ainda existem as classes sociais, mas o uso que o discurso marxista tradicional faz do conceito de classe social talvez deva ser revisto.
Acho que não é necessário se servir do conceito de luta de classes, na sua tradição marxista, para analisar hoje as lutas, as hegemonias, as contradições, as relações de força que, por não serem as das classes, não deixam de ser de uma estrutura de grupo, que a gente pode analisar com um espírito marxista. Não se trata de conservar ou de abandonar o conceito de luta de classes, basta adaptá-lo a uma nova situação político-econômica.
Quanto à dialética marxista, é preciso dizer que a expressão materialismo dialético não está em Marx. Por outro lado, como muitos pensadores franceses, eu questionei a dialética. O que existe de estritamente dialético em Marx não é o que mais me interessa.
Isso posto, mesmo se num determinado momento existem conflitos que não são dialetizáveis, o pensamento dialético pode ainda ser muito fecundo. O meu trabalho, nesse livro e nos anteriores, é de interrogar a necessidade e o limite da lógica dialética.
Folha - O sr. fala de uma Nova Internacional. Quem vai fazer parte dessa Nova Internacional e como ela vai se organizar?
Derrida - O que eu chamo de Nova Internacional, brincando com esta expressão, implica em detectar através do mundo, fora dos partidos, fora dos sindicatos, uma aspiração a uma solidariedade internacional, que reúna homens e mulheres que não são necessariamente cidadãos de um Estado ou sujeitos políticos, no sentido tradicional da palavra político.
Tal solidariedade exige uma transformação do direito internacional e da democracia, que hoje não se afina com o conceito de Estado-nação, de fronteira e nem com um direito internacional de instituições internacionais que são, por um lado, regidas por categorias européias criticáveis e, por outro lado, são dependentes dos Estados Unidos.
A gente pode detectar a aspiração através de muitos sinais, ela forma uma espécie de solidariedade. Embora, não tenha forma organizacional, ela perturba as instituições ligadas ao Estado. Existe uma força internacional que hoje é obscura e ainda não encontrou a sua linguagem.
Folha - Qual a finalidade da reunião do Parlamento Internacional de escritores em Lisboa este ano?
Derrida - Vamos trabalhar juntos. O tema da reunião será a literatura deslocada.
Folha - O que é a literatura deslocada?
Derrida - Hoje, mais do que nunca, muitos escritores, pensadores, jornalistas, pessoas que representam a liberdade de palavra, estão ameaçados de morte, ostracizados, expulsos do seu país ou, às vezes, obrigados a se esconder no interior do mesmo, a se autocensurar.
Por que tanto exílio no exterior e no interior? Por que os escritores, os que inventam formas e trabalham com a linguagem estão assim tão visados?
Folha - O que tem a autocensura com a mídia?
Derrida - A mídia, seja ela estatal ou livre, é controlada por monopólios de interesse comercial, ela é dirigida pelo mercado.
Folha - Que efeito tem isso sobre o trabalho do escritor?
Derrida - A mídia é a mediação entre o escritor e o leitor, é um poder que avalia, classifica, sustenta ou marginaliza e, consequentemente, limita a autonomia de criação. Os escritores começam a só escrever o que o mercado vai absorver.
A onipotência do mercado exerce um efeito de autocensura, sem falar das censuras ainda mais graves como as que pesam sobre Salman Rushdie, sobre os escritores que na Índia ou em outros lugares estão ameaçados de morte.
No Parlamento Internacional vamos refletir a respeito das condições novas destas perseguições, de suas agravações atuais. O escritor sempre teve problemas com o poder estatal ou religioso, mas hoje isso se passa em condições diferentes.
Folha - Trabalhar no Parlamento é uma forma de ser um intelectual engajado?
Derrida - A palavra engajado tem uma história. Quando a gente se diz engajado, corre o risco de evocar modelos anteriores e o engajamento hoje deve encontrar formas novas. Mas o trabalho no Parlamento é uma forma de engajamento, claro.
Folha - Obrigada pela entrevista.
Derrida - Isso basta? O material é suficiente?
Folha - Acredito que sim. Agora é redigir a entrevista e pedir uma foto ao seu editor.
Derrida - Se você quiser, eu posso te dar uma foto.

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