São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 1994
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Silvio Santos preserva submissão feminina

MARTA SUPLICY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrevendo um artigo sobre a situação da mulher e o trabalho, constatava o quanto o trabalho feminino ainda é submetido ao papel que as mulheres exercem na sociedade e na família.
Mesmo com a mulher adquirindo novos comportamentos, tendo seu grau de instrução aumentado nas últimas décadas e ampliando suas necessidades de consumo, sua participação no mercado ainda depende da complexa combinação de fatores individuais e principalmente do número de filhos.
Daí a presença acentuada da mulher no setor informal da economia, no qual não obedecem horários rígidos e podem cuidar dos filhos e da casa, evidentemente ganhando menos e sem direitos trabalhistas, e nas profissões tradicionalmente femininas, nas quais os salários são sempre mais baixos.
Os dados apresentados em trabalhos da pesquisadora Cristina Bruschini, da Fundação Carlos Chagas, mostram que em qualquer situação os salários das mulheres são inferiores aos dos seus colegas. Em 1988, enquanto os gerentes ou administradores recebiam, em média, cerca de 15,2 salários mínimos por mês, as gerentes e administradoras ganhavam quase a metade: 8,3.
Bem, enquanto eu pensava sobre estes dados, fui invadida por imagens do programa "Porta da Esperança", do SBT, com o apresentador Silvio Santos, que eu assistira no domingo dia 19.
A jovem que se apresentava queria se reconciliar com o irmão que não a cumprimentava há dez anos. Ela havia se mudado para uma cidade com o irmão e um primo. Todos trabalhavam, e ela também cozinhava para o grupo, após o serviço.
Com o passar dos meses ela fez amizades na cidade e queria sair à noite. O irmão não deixava, preocupado com seus 16 anos e, talvez, com a responsabilidade que lhe sobrava nesta sociedade patriarcal.
Uma noite a jovem escapuliu pela janela. O irmão a flagrou e deu-lhe uma surra que a levou ao hospital. Ela fugiu e, anos depois, quando se reencontraram, ele não quis mais falar com ela.
Emocionada, a moça contava na TV como gostava do irmão e desejava uma reconciliação. Silvio Santos perguntava se ela queria que ele a perdoasse. Ela respondia, chorando, que sim.
Eu não conseguia acreditar! A moça cozinhava para os dois, apanhou a ponto de ir para o hospital e queria ser perdoada? E Silvio Santos insistia que o irmão provavelmente queria tomar conta dela e que ela devia ter sido bem assanhada para ele ter tido que se preocupar tanto. No que ela assentia dizendo: "Eu era bem namoradeira".
Ninguém questionava a surra, o direito que o irmão julgava ter sobre ela, o tipo de sociedade patriarcal na qual vivemos e que gera esta submissão da mulher.
Nesta altura eu olhava fascinada o programa, porque a moça estava muito emocioda, e o apresentador agora falava que ia conversar com o irmão. Vamos para uma entrevista na casa dele, mas antes Silvio Santos comenta: "Você não tem que se preocupar porque ela agora está casada. O marido dela está na platéia e agora a responsabilidade é dele". Eu estava pasma!
O irmão, surpreendido em sua casa pela equipe de TV, com flores e pedido de perdão, não consegue, de imediato, pensar quem poderia ser. Com algumas dicas percebe que falam da irmã. Sinto um certo alívio porque pelo menos ele diz que não tinha o que perdoar.
Nesta altura o clima está emocionante, e o apresentador coloca a questão: será que ele veio até aqui para uma reconciliação?
Tan tan tan tan!
Ele está! Os dois se abraçam, eu lacrimejo, irritada por me ver comovida com tal absurdo, e Silvio Santos apresenta o marido, "o responsável em tomar conta da moça"!
Que bom! A frase corta o meu barato de imediato e me traz para a realidade do que acabei de ouvir.
Fiquei estupefata com a manipulação habilidosa dos sentimentos, com o machismo, com as mensagens atrasadas etc etc. Não dá para um apresentador com o carisma e penetração popular de Silvio Santos ser tão preconceituoso no ar.
Fico pensando que ele tem quatro filhas e provavelmente não se deu conta de que este tipo de postura não vai ajudar a sociedade a se transformar em um lugar melhor para essas moças viverem.
Por mais oportunidades que elas tenham, e as mulheres mais instruídas têm mais chances de trabalho, e as ricas evidentemente uma escolha mais ampla, elas também sofrerão a discriminação na hora em que forem negociar, empregar, dividir as responsabilidades e tentar ser mulheres não-submissas numa relação afetiva.
O programa Silvio Santos poderia ser, além de uma distração para a população, uma forma de educá-la nos novos valores e papéis sociais da mulher, mas nunca uma perpetuação do que existe de mais retrógrado e arcaico no nosso país e que tem consequências tão danosas para a conquista de uma igualdade de direitos para a mulher.
Sei que existem inúmeros programas igualmente ruins, preconceituosos, que humilham as pessoas, deseducam etc. Calhou de eu assistir esse.

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