São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 1994
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Cave faz canções de amor amaldiçoadas

BIA ABRAMO
EDITORA DA ILUSTRADA

Nick Cave gravou um disco com dez canções de amor. Até aí, nada –todo mundo vive gravando canções de amor. Só que a história que Nick Cave conta em "`Let Love In" não se perde em pequenas questõezinhas sentimentais.
Em primeiro lugar, porque vem embalada em uma música pesada, atormentada, que por vezes chega à grandiloquência. O que quer que Cave e os Bad Seeds tenham feito com suas referências musicais mais imediatas –o rock, o blues e o country–, o resultado é uma música de matizes escuros –mas não necessariamente depressivos.
Alguma estridência, explosões de microfonia e arranjos caóticos afastam qualquer parentesco de Cave com a "no wave" do Joy Division ou com o gótico do Bauhaus. Os Seeds mantém uma deliberada distância do rock –Cave já declarou que Burt Bacharah é seu compositor predileto– e dos modismos do cenário pop.
Além disso, Nick Cave talvez seja o mais talentoso e original letrista de toda a história do rock, ao lado de Lou Reed e de Leonard Cohen. Como Reed, ele joga com frases simples, de uso cotidiano. Como Cohen, faz achados tocantes em sua simplicidade, assombrosos em sua sinceridade.
Como nenhum deles, Cave construiu um imaginário próprio. Assim, o amor é um sentimento que se pergunta insistentemente "você me ama?", assombrado por demônios que "que esperam do lado de fora da porta/ corcoveando, urrando e pateando" (em "Loverman") e irmão dos "gêmeos desespero e decepção".
O oitavo disco de Cave, intencionalmente ou não, é organizado como o calvário de um homem apaixonado. A comparação com a via-crúcis não é um truque de expressão: Nick transita por um universo, onde existem palavras como pecado, devoção, queda, salvação, tentação, deus e o diabo.
Neste mundo, o amor pode ser tanto a causa da redenção quanto da perdição. Quando o sentimento significa a salvação de uma alma perdida, ele corre o risco de cair de novo na tentação: daí uma canção como "Thirsty Dog", onde ele canta obsessivamente "I'm Sorry": "me perdoe, querida, mas não se preocupe/ amar é dizer sempre sinto muito/ e eu estou arrependido, da cabeça ao pés."
"Do You Love Me?", uma canção em duas partes que abre e fecha o disco, funciona como um mote que está nas entrelinhas de cada uma das faixas. Um belo arranjo de órgão, tocado pelo próprio Cave, faz o contrapeso para versos como "eu parecia tão obsoleto e pequeno/ eu achei Deus e seus demônios dentro dela".
Em "Let Love In", Cave e os Bad Seeds fazem como que uma revisão de todos os caminhos que essa banda peculiar já percorreu desde "Your Funeral, My Trial". Comparecem baladas mais suaves, primas das que rechearam "The Good Son", como "Ain't Gonna Rain Anymore", um lamento melancólico pela perda: "ela não vai voltar mais/ diga que você vai, eu não me importo."
"Let Love In" é para ser ouvido um vez, de ponta a ponta, com o encarte na mão. E depois, deve-se descobrir aos poucos seus pontos altos: "Loverman", "I Let Love In" e as duas partes de "Do You Love Me?".

Disco: Let Love In
Banda: Nick Cave and the Bad Seeds
Produção: Tony Cohen e Bad Seeds
Lançamento: Mute/Warner
Quanto: 18 URVs (o CD, em média)

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