São Paulo, terça-feira, 28 de junho de 1994
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País não merece vitória do Plano Real

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Dentro de três dias entra em cena o Plano Real. Não há solidão mais terrível do que ser da equipe econômica do governo. Ela tentou conciliar um desejo social-democrata com práticas administrativas do mundo moderno. O plano tentou uma respiração boca a boca para um governo castrado pela Constituição corporativista de 1988 e chega à praia como o peixe de "O Velho e o Mar" de Hemingway, devorado por tubarões.
O plano foi elaborado por uma equipe de alto nível que, por meses, se esgueirou entre o desejado e o possível. A equipe econômica viveu como uma trupe de malabaristas entre a sordidez nacional e as hesitações de Itamar. E todos dizem: "E se não der certo?"
Quem ajudou o plano? Você ajudou, oh leitor, meu semelhante e meu irmão? Ninguém ajudou.
O Congresso não ajudou. Quase levou o FHC à loucura para aprovar o Fundo Social de Emergência, depois de milhões de chantagens de grupos, e se recusou a fazer a revisão constitucional que seria essencial para a continuidade de tudo. O Congresso fez tudo para impedir qualquer alento para o Executivo, ou pela falta congênita de quórum ou pela chantagem clientelista, ou vendendo apoio, ou pela simples crueldade tradicional do político brasileiro.
O PFL não ajudou, com a bancada se retirando em massa sob o comando dos "malvadezas" para "impedir novos impostos ao povo". O PPR não ajudou, com Amin dizendo que se o "governo fez pacto com o diabo (eles), o diabo não cumpre".
Nenhum partido apresentou alternativa à equipe de Lara, Arida, Franco, Bacha, a não ser balbucios nacional-populistas ou trismos de estruturalistas.
O PT não apresentou plano alternativo algum. O PT, um partido com origem humanista, achou que tinha de cair na "realpolitik" eleitoral e, depois de ter sabotado o parlamentarismo, não teve a generosidade de ver que o plano era uma tentativa racional. Nunca se perdoará o PT por este bloqueio à governabilidade, e se Lula for eleito pagará por esse erro.
A sinistra bancada ruralista fez chantagem para aprovar a Medida Provisória, querendo nos roubar bilhões de dólares em perdão bancário e calotes e fazendo a frente UDR-stalinista com os filhos de Paim e Gonzaga Motta.
As empresas estatais não ajudaram nunca. Boicotaram para não perder suas ilhas de tranquilidade num mar de merda, seus 17 salários, mentiram, inventaram poços de petróleo e gastaram milhões em publicidade para defender a "soberania nacional" deficitária que só seus funcionários fruem.
Os economistas não ajudaram, por inveja ou competição, só abrindo a boca para polêmicas estéreis ou para piadinhas irônicas. Agora acusam o plano de incompleto, defeituoso, quando nada fizeram por sua completitude.
A "lumpen-burguesia" não ajudou o plano. Só fez simbólicos apoios verbais, reuniões sem fim, arremados de pactos e de boas vontades, quando não foi capaz de reduzir um grão de sua lucratividade espantosa em qualquer padrão ocidental.
As multinacionais não ajudaram, fixando margens de lucro vinte vezes maiores que em seus países de origem e puxando a inflação para cima.
Os "caras-pintadas" idiotas não ajudaram o plano, dissolvidos numa contrapropaganda estudantil albanesa e incapazes de se mobilizar por causas mais complexas do que meros carnavais moralistas como o "impeachment".
A Igreja não ajudou o plano, ficando apenas nas generalidades dos grandes lamentos abstratos contra a injustiça das condições de vida do povo infeliz. Como viver sem mártires a lamentar?
A imprensa não ajudou muito, preferindo priorizar o "fait divers", o sensacionalismo do pequeno fato, contra a chata positividade das medidas racionais. A imprensa preferiu cobrir as CPIs e outros moralismos baratos que o escândalo da não-revisão constitucional.
Nosso horror à racionalidade também não ajudou. A falsa "cordialidade" nacional, que oculta estupidez e egoísmo, também teve horror das tecnicalidades do plano e sempre desconfiou dele.
Nosso horizonte cultural estreito, a testa curta de nossos intelectuais culpados e ideológicos, também não ajudou o plano, cultivando a miséria como um jardim particular para a reflexão melancólica e odiando medidas administrativas.
Nossos artistas e estrelas também não ajudaram nada o Plano Real, ninguém cantou uma música de apoio ao governo, ninguém correu o risco de ser chamado de "adesista".
O Judiciário também não ajudou o plano, com sua indústria de liminares e sua corrupção protegida em dignidades de capa negra que desfilam em palácios de mármore de US$ 200 milhões. O Supremo Tribunal Federal se conferiu aumentos pelo pico contra a média nacional, confirmando sua origem agrária, personalista, bacharelesca.
A descrença nacional em qualquer sinceridade de propósitos também não ajudou. Nosso egoísmo descrê em qualquer interesse público. Nosso amor ao abstrato e horror ao concreto também não ajudaram. A nossa burrice congênita não ajudou o plano, já que desconfia da razão com tintas visíveis de um protofascismo rancoroso. Seguem qualquer populismo com avidez, mas qualquer racionalidade provoca bocejos.
Também não ajudou o plano o medo de errar do próprio governo. A burocracia estatal, com seu medo do novo, também não ajudou o plano e levou a equipe a torturas kafkianas, com o medo de cortes no orçamento, das mudanças nas regras do jogo.
E, no meio desta luta de estatismo contra modernidade, de personalismo contra espírito público, do rural contra o urbano, a equipe econômica está terminando seu calvário. E, no final, ainda surge das caras lavadas de burgueses inerciais como Abílio Diniz e Levy Nogueira dizendo que vão remarcar os preços no peito, como se fossem embaixadores de um país inimigo, o país dos supermercados.
O que não querem é perder o lucro de vender à vista e pagar a prazo, ganhando 40% ao mês. Seus rostos atravessam séculos para trás e se encaixam no corpo dos primeiros predadores que vieram de Portugal, degredados e oportunistas.
Se o plano der certo, não podemos comemorar nada. O Brasil inteiro só fez atrapalhar. Se der certo, a vitória será apenas da equipe que sofre a tortura de tentar o novo neste país atrasado. Se fracassar, a culpa será só nossa, que merecemos enfiar a cara na hiperinflação e no sujo e ansiado fundo do abismo. Finalmente em nosso habitat: terra de ratos e toupeiras.

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