São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 1994
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Derek Walcott defende a cultura mestiça

GUILLERMO ALTARES
DO "EL PAÍS"

Derek Walcott (nascido em Castries, capital da ilha caribenha de Santa Lucia, em 1930) viajou à Espanha para ser investido como doutor honoris causa pela Universidade de Alcalá de Henares.
Quase toda sua obra ainda é inédita em castelhano, exceto duas antologias. Quando ele recebeu o prêmio Nobel de Literatura de 1992, era um autor quase desconhecido na Espanha.
Mas em junho a editora Anagrama lançou seu livro "Omeros", um impressionante poema de quase 300 páginas em sua edição original.
Walcott é um homem simpático e divertido, que tem dificuldade em manter um tom sério durante suas entrevistas.
Dificilmente consegue dissimular uma de suas principais características: o fato de que é uma máquina de fazer piadas. Em Madri, ele encontrou tempo para assistir uma tourada, visitar a Feira do Livro e o Museu do Prado.

Pergunta - Em sua obra há uma defesa do Caribe como ponto de fusão de raças e culturas.
Resposta - As pessoas que vieram ao Caribe deixaram todo o resto para trás. Os africanos vinham da escravidão, e alguns brancos eram presos condenados da época de Oliver Cromwell (estadista e general puritano britânico, 1599-1658).
Todos vinham de outro mundo, tendo feito uma longa viagem para recomeçar suas vidas em outro lugar, e tinham que viver juntos no Caribe.
Sua história começa com uma desapropriação, um desalojamento, não com uma apropriação.
Pergunta - O sr. não acha que a Europa e os Estados Unidos têm muito a aprender com essa experiência de convivência?
Resposta - Obviamente a situação nos EUA não é a mesma, porque a opressão racial continua existindo.
No Caribe é diferente, acho que por causa do tamanho do lugar –é como se estar num barco, onde é preciso compartilhar tudo que há.
No Caribe, e sobretudo em Trinidad, é muito comum africanos, índios, sírios, chineses, brancos viverem na mesma rua. Não existe hostilidade entre as diferentes raças.
Pergunta - Em seus poemas, a língua inglesa é submetida a enormes tensões, está carregada de palavras procedentes de outras línguas ou que adquirem um sentido novo.
Resposta - Quando você é um poeta jovem é muito difícil encontrar a melodia de sua própria voz. É preciso encontrar uma voz que tenha a mesma melodia, os mesmos matizes, que o lugar de onde você vem.
No Caribe a língua é uma combinação de espanhol, francês, português. Tudo no Caribe é um fermento de idiomas e isso representa uma riqueza enorme para um escritor.
Pergunta - Num de seus poemas, de nome "Colonial francés, Vers de société", o sr. se mostra muito crítico em relação à cultura francesa.
Resposta - Eu falo de uma antiga colônia. Quando se olha a atitude de alguns impérios em relação a suas colônias, acho que os franceses têm sido especialmente destrutivos.
A tenacidade com que se aferraram à Indochina, à Argélia, é muito particular. "O que estamos ensinando a vocês é muito bom para vocês", parecem dizer.
No fim das contas, acho que todas as guerras são um problema de cultura, não de economia.
Pergunta - Em vários poemas o sr. diz que nunca esteve em Paris. O sr. pretende ir a Paris algum dia?
Resposta - Para mim, ir à Europa é viajar na história. A hostilidade que se tem, em termos históricos, termina quando se conhece as pessoas.
Para um escritor colonial é muito duro examinar este fato, é uma experiência desalentadora. Não se pode acusar uma abstração: os franceses, os espanhóis.
Mas, por outro lado, vemos as consequências do imperialismo, da exploração, todos os dias. É preciso nos distanciarmos de nós mesmos para examinar certos aspectos do que chamamos de história.
Pergunta - Em suas obras há muitas referências a César Vallejo, a Conrad, a Joyce. São escritores que submeteram suas línguas a mudanças profundas.
Resposta - Eu li muitas coisas de Vallejo, embora traduzidas. Mas acredito que alguns poetas são tão fortes que sobrevivem às traduções.
Por outro lado, não posso dizer que esteja mudando minha língua. Meu caso não é diferente do de qualquer irlandês que escreve em inglês, como Joyce ou Yeats.
O inglês não é sua língua, mas a última coisa de que se pode chamá-los é de ingleses. O fato de você escrever numa língua não significa que você se convirta em sujeito dela.
E isso é verdade para todos os escritores da América Latina, para toda a experiência caribenha.
Escrevemos na língua do império, mas há outras realidades subterrâneas na linguagem, há ritmo. Embora isso também seja um perigo. Se você ficar "reggae" demais, pode acabar se cansando disso.
A experiência poética consiste em lutar para encontrar toda a riqueza de uma língua.
Pergunta - "No fim desta frase começará a chover". Este verso, que pertence a seu poema "Arquipélagos", parece indicar uma relação quase mágica entre a linguagem, a criação poética e a natureza.
Resposta - O verso é uma adaptação de Pasternak, que escreveu: "Se o leitor continuar com essa frase, uma tempestade de neve vai começar". A dívida está aí, mas não é roubo.
Para mim esta frase contém a geografia do Caribe. Acho que escrever poesia tem muito a ver com a luz, com a luz natural.
Todos os poemas têm ar e luz. Se você está no Caribe e vê uma onda, sua cor, sua forma, sua simplicidade são mais emocionantes do que escrever.
Se você consegue isto ao escrever um poema, se ao lê-lo você sente algo parecido com essa emoção, você está pagando um tributo à luz, à luz natural, mas também a uma luz que existe por trás das coisas.
Pergunta - "Omeros" é uma obra atípica na literatura contemporânea. Escrever um poema épico, de quase 300 páginas, não é coisa muito habitual hoje em dia.
Resposta - Não é um livro épico. Acredito que os pescadores no Caribe são heróis, porque lutam contra as tempestades, contra o mar.
Não é um livro ambicioso, eu não pretendia fazer uma obra tão longa, mas ela começou a crescer. A épica tem a ver com o patriotismo, com um destino religioso, com o militar...
Eu apenas quis expressar uma gratidão imensa para com as pessoas do lugar de onde venho. Sei que muitas delas não podem ler esse tributo, mas é para elas.
Seu título não é uma homenagem a Homero, seria uma estupidez tentar recriar Homero. É um livro sobre os nomes. A experiência humana é tentar esquecer. Nos dão um nome que não é nosso, mas a gente tem que conviver com ele.
O nome de uma ilha, de um país, teu próprio nome: você tem que aceitá-lo. Essa é a experiência do Caribe. Para aqueles que chegaram da África, todos os nomes mudaram.
É uma rendição aceitar o novo nome? Não, mas é preciso saber o que era antes e o que é agora.

Tradução de Clara Allain

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