São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 1994
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Do direito ao privilégio

MARILENA CHAUI

A greve das universidades paulistas suscitou polêmicas em torno de números, índices, recursos e custos. Jornalistas, universitários e empresários ocuparam diferentes páginas deste jornal e alguns, como o empresário Antônio B. B. Guilhon, denunciaram o descaso do poder público brasileiro com a educação fundamental, o caráter elitista das universidades, o mal gerenciamento dos recursos universitários e compararam quadros referentes às universidades públicas brasileiras e estrangeiras.
Muitos, vítimas de estranha amnésia, esqueceram que, durante a ditadura, as "elites" brasileiras, sob o pretexto de combate à subversão, mas, realmente, para servir aos interesses de uma de suas parcelas (os proprietários das escolas privadas), praticamente destruíram a escola pública de primeiro e segundo graus.
Por que o fizeram? Porque, neste país, educação é considerada privilégio e não um direito dos cidadãos. Como o fizeram? Cassando seus melhores professores, abolindo a escola normal, inventando a licenciatura curta, alterando as grades curriculares, inventando os cursos profissionalizantes irreais, estabelecendo uma política do livro baseada no descartável e nos testes de múltipla escolha e, evidentemente, aviltando os salários dos professores, retirando recursos para manutenção e ampliação das escolas.
Que pretendiam? Exatamente o que muitos dos articulistas de hoje exigem que seja feito: ensino básico para formar mão-de-obra barata para o mercado de trabalho.
Feita a proeza, as "elites" aguardaram o resultado: os alunos do primeiro e segundo graus das escolas públicas, porque supostamente destinados à entrada imediata no mercado de trabalho, não dispõem de condições para enfrentar os vestibulares das universidades públicas.
Em contrapartida, os filhos da alta classe média e da burguesia, formados nas boas escolas particulares, tornam-se a principal clientela da universidade pública gratuita. E, agora, temos de ouvir essas mesmas "elites" (empresariais e universitárias) nos ensinarem como baixar custos e "democratizar" a universidade que nos impuseram. Mais: a universidade que nos propõem é a versão 90 do que se fez no ensino básico, na versão 70.
Há, hoje, na Universidade de São Paulo, três tipos de escola que não correspondem à divisão institucional da universidade em institutos e faculdades, mas ao modo como a atividade universitária é pensada e exercida, os três tipos podendo existir e co-existir em qualquer dos institutos e faculdades:
1) a que dá prestígio curricular ao docente; 2) a que oferece complementação salarial ao docente e pesquisador; 3) a universidade pública.
A escola do prestígio curricular é aquela na qual o docente não é pesquisador nem a ela se dedica em tempo integral, mas ali leciona em tempo parcial algumas horas por semana.
Embora a verdadeira profissão seja exercida noutro local (consultório, escritório particular, empresas privadas), o profissional tem interesse em apresentar-se com o currículo de professor da USP porque este vale clientes ricos ou um bom cargo na firma.
A escola de complementação salarial é aquela em que as pesquisas são financiadas por empresas e organismos privados que subsidiam a montagem e manutenção de laboratórios, bibliotecas e equipamentos, congressos e simpósios nacionais e internacionais, publicações, viagens e cursos no estrangeiro.
Como os recursos estão vinculados a institutos e departamentos numa relação autônoma com os órgãos financiadores, os orçamentos, finalidades e resultados dos trabalhos não são públicos, no duplo sentido do termo, isto é, não têm origem pública e não são publicizados e os financiadores fazem uso privado dos resultados.
Esse tipo de escola é visto (dentro e fora da USP) como modelo de modernidade porque desincumbe o poder público da responsabilidade com os custos da pesquisa e recebe o nome de "cooperação entre a universidade e a sociedade civil".
Nela consagra-se a idéia de que a universidade é essencialmente prestadora de serviços, sendo por isso "produtiva". É o tipo acabado da universidade "moderna" do Terceiro Mundo, uma vez que os grandes e verdadeiros financiamentos privados para pesquisas fundamentais e de ponta são destinados às universidades e institutos do Primeiro Mundo.
A terceira escola é a universidade pública propriamente dita. Nela, os docentes dedicam-se ao ensino e à pesquisa em tempo integral, dependem inteiramente dos recursos públicos (nos dois sentidos do termo: os orçamentos e os resultados são públicos e publicizados) e destinam a totalidade de seus trabalhos à sociedade, seja formando profissionais de várias áreas, seja formando novos professores, seja publicando suas pesquisas e as de seus estudantes, seja realizando atividades de extensão universitária para profissionais de várias áreas e para atualização de professores de primeiro e segundo graus, seja realizando pesquisas ou participando na formulação e supervisão de projetos e programas sociais para os governos.
Essa terceira escola é aquela que mantém um vínculo interno entre docência e pesquisa, portanto, entre formação e criação, conhecimento e pensamento.
Nela, realizam-se as pesquisas fundamentais, ou seja, as de longo prazo, independentes, que acarretam aumento de saber, mudanças no pensamento, descobertas de novos objetos de conhecimento e novos campos de investigação, reflexões, críticas sobre a ciência, as humanidades e as artes e compreensão-interpretação das realidades históricas.
São os docentes e pesquisadores dessa terceira escola que, após 25 anos de serviços, três teses, cinco concursos, orientação de 20 a 40 novos mestres e doutores, publicação de livros e artigos, atividades administrativas em comissões universitárias e postos de direção e 40 horas semanais, recebem US$ 2.500 brutos.
Esse fenômeno uspiano não é senão a absorção acrítica do modelo neoliberal para a universidade. Sua data de nascimento foi a instalação de fundações privadas no interior da universidade; no batismo, recebeu o nome de "modernização pela ampliação de recursos externos"; foi crismada com a "avaliação do desempenho e produtividade universitários".
A avaliação das atividades universitárias é necessária e indispensável: 1) para orientar a política universitária do ponto de vista de um saber da universidade sobre si mesma, de seu modo de inserção na sociedade e significado de seu trabalho e para reorientação de programas e projetos; 2) para orientar a análise técnica dos problemas operacionais e financeiros, suprir carências, atender demandas, quebrar bolsões de privilégios e de inoperância; 3) para a prestação de contas devida aos cidadãos.
Ora, a "avaliação" que vem sendo realizada na USP não cumpre nenhuma dessas três finalidades porque, paradoxalmente, a universidade, centro de investigação onde tudo quanto existe deve transformar-se em objeto de conhecimento, tem sido incapaz de colocar-se a si mesma como objeto de saber, criando métodos próprios que permitam elaborar técnicas específicas de auto-avaliação.
Resultado: vem aplicando, de modo acrítico e desastrado, os critérios usados pelas empresas, imitando –e muito mal– procedimentos ligados à lógica do mercado (compreensivelmente, a lógica necessária para as empresas), portanto uma aberração científica e intelectual, quando aplicados à docência e à pesquisa.
Consequentemente:
1) empregando critérios que visam à homogeneidade, a avaliação despoja a universidade de sua especificidade, isto é, a diversidade e pluralidade de suas atividades, determinadas pela natureza própria dos objetos de pesquisa e de ensino, regidos por lógicas específicas, temporalidades e finalidades diferentes;
2) nada é conseguido como autoconhecimento da instituição, mas apenas um catálogo de atividades e publicações (acompanhadas de inexplicados conceitos classificatórios) que, absurdamente, passa a orientar a alocação de recursos;
3) a prestação de contas à sociedade não se cumpre porque tanto orçamentos quanto execuções orçamentárias são apresentados com os números agregados, sem explicitação de critérios, prioridades, objetivos e finalidades e sem explicitar os convênios privados.
Seria de esperar que algumas questões merecessem a reflexão da universidade.
Do ponto de vista econômico: a terceirização da economia (que produz a universidade de serviços), a ciência e a tecnologia como forças produtivas (que amarram a pesquisa ao mercado), a velocidade das informações e de suas mudanças (que desqualifica rapidamente o conhecimento e impõe à educação um ritmo contrário à idéia de formação), o desemprego estrutural (que destrói direitos ao lançar parcelas crescentes da sociedade no estado de pura carência) e a inflação estrutural (que corrói salários e lança os universitários na batalha perdida da luta salarial).
Do ponto de vista político: as consequências da ideologia neoliberal, isto é, o encolhimento do espaço público e alargamento do espaço privado, com a supressão dos direitos por privilégios (do lado da "elite") e por carências (do lado popular), aniquilando a cidadania.
Do ponto de vista teórico: a "crise da razão", que leva à recusa das categorias que fundaram e organizaram o saber científico e filosófico modernos (objetividade, racionalidade, necessidade, causalidade, contingência, universalidade, finalidade, liberdade etc.), lançando o saber seja no irracionalismo "pós-moderno", seja no imediatismo quantitativo da "produtividade", seja no fetichismo da circulação veloz de informações efêmeras.
Passando ao largo de uma compreensão científico-filosófica e político-cultural dessas questões, absorvendo passivamente os ares do tempo, a USP alegremente imagina-se vivendo no compasso da "modernização" que deverá tornar obsoleta e descartável a universidade pública que, buscando enfrentar os problemas do "colapso da modernização", ainda resiste em seu interior. Do decaptado modelo japonês, adotou, sem o saber, apenas o haraquiri.
O resultado imediato e mais visível dessa passividade (satisfeita, em uns, e infeliz, em outros) aparece na maneira como a polarização universitária se exprime atualmente: produtividade e competitividade, eis o discurso das cúpulas universitárias; defesa da categoria e dos salários, eis o discurso das associações e sindicatos universitários. Foi o que presenciamos em maio e junho deste ano.

MARILENA DE SOUZA CHAUI, 52, é professora titular do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo) e autora de "O que é Ideologia" e "Cultura e Democracia", entre outros livros. Foi secretária da Cultura do Município de São Paulo (administração Erundina).

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