São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 1994
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Woody Allen põe um tarado à caça de almas

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Woody Allen escreveu certa vez que foi reprovado em Metafísica porque o professor o apanhou espiando a alma do garoto sentado ao seu lado. Desde então, não tem feito outra coisa senão tentar espiar a alma dos outros –só que agora é pago para fazer isso nos filmes. Quase todos esses filmes são ótimos, e não se entende porque Allen continua sofrendo tanto.
Em "Neblina e Sombras", de 1991, Woody Allen situa o seu desfile de almas numa sinistra cidadezinha talvez centro-européia, numa época que, pela canção que acompanha quase toda a narrativa ("When Day is Done"), parece a década de 20 –não a década de 20 da vida real, mas a dos filmes da UFA, com aquela atmosfera carregada.
Um perfeito inocente, Kleinman (Woody), é arrancado da cama numa noite horrível e obrigado a juntar-se à captura de um tarado que anda degolando gente. Ninguém lhe diz o que fazer e, em vários momentos, ele fica a milímetros de ser a próxima vítima. Os justiceiros começam a matar-se entre si, cada qual achando que seu plano é melhor para pegar o tarado, e, de repente, Kleinman torna-se o principal suspeito dos assassinatos.
Basicamente essa é a história do filme, que Woody tirou de sua própria peça em um ato, "Morte", incluída em seu livro "Sem Plumas" (L&PM, 1979). É puro Kafka (o inocente cheio de culpa que, apanhado numa situação que não lhe diz respeito, confronta-se consigo mesmo), só que num cenário de "M, O Vampiro de Dusseldorf" (Fritz Lang, 1932) e, às vezes, com o terror infantil das velhas comédias de Abbott & Costello.
Mas Woody acrescentou uma subtrama à história, envolvendo uma artista de circo (Mia Farrow) que foge do namorado (John Malkovich) e vai dar num bordel, onde descobre que suas convicções amorosas têm preço. Aí já é Woody brincando de Bergman em "Noites de Circo" (1953) ou, quem sabe, de E. A. Dupont, o diretor do clássico expressionista "Varieté" (1925).
Calma, não é preciso ter uma enciclopédia de cinema na cabeça para gostar de "Neblina e Sombras". A inteligência e graça dos diálogos, a fabulosa fotografia de Carlo DiPalma e o elenco de notáveis em pequenos papéis (Madonna, John Cusack, Jodie Foster, Donald Pleasance, Lily Tomlin etc) garantem 80 minutos de grande prazer.
É verdade que as duas histórias (a de Kleinman e a da moça do circo) se fundem meio a martelo, e tem-se a impressão de que Woody não sabia como terminar o filme. Ou que esse podia terminar como a peça original, em que o tarado é a própria Morte e tem a cara de todos que ela vem buscar. Mas aí seria Woody ainda tentando fazer um brilhareco para aquele professor de Metafísica.

Título: Neblina e Sombras (Shadows and Fog)
Direção: Woody Allen
Elenco: Woody Allen, Kathy Bates, John Cusack, Mia Farrow, Jodie Foster, Fred Gwynne, Madonna, John Malkovich
Produção: EUA, 1991, preto-e-branco
Distribuição: LK-Tel Vídeo (011/ 825-5766)

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